Page 31 - Revista da Armada
P. 31
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (28)
O 401 da Marinha...
(…) No dia seguinte a um ataque ale- nos. Contudo, ao contrário do que agora – Eu cá vou como a maré nos rios da
mão ao posto de Namaca, o soldado 400, se tornou comum, não falamos de como Guiné (não percebi se a rima era propo-
Migueis, bate à porta do comando em o nosso país parece degradar-se, ou de sitada), flutuo abaixo e acima, mas não
Palma e pede para falar com o coman- como os militares – apesar de todos os deixo de sorrir aos amigos que passam,
dante do batalhão, Guedes Vaz. A custo, sacrifícios feitos pela pátria, ao longo dos como o Doc…
o soldado conta como se sente envergo- séculos – são muitas vezes tidos como
nhado por estar a construir jangadas na “despesa pública” a abater por mor de um Falámos então um pouco. Perguntou-
praia enquanto os camaradas trocam tiros défice que não para de crescer… -me pelo meu filho. Ofereceu-me os pa-
com alemães. rabéns pelos meus “feitos” académicos.
Não, o nosso militar, que aqui vou cha- Foi então (…e só então…) que reconhe-
(…) Guedes Vaz chama-o e entrega-lhe mar 401 em honra daqueloutro comba- ci o homem profundo que era o 401 e a
a guia de marcha. O 400 lê a guia. tente, exposto no texto acima, o 400, que
Os olhos tomam a expressão de ale- se sentia envergonhado por não poder es- honra que fazia à farda que – no seu
gria de um pobre que visse premiado tar na linha da frente, naqueloutra guerra eu escondido – ainda enverga… Não,
o número da sua cautela. (…) Dá um de África, que Portugal combateu, com o nosso homem não parecia irritado
salto para a retaguarda e exclama ipsis pesadas baixas, no princípio do século com a política, desesperado pelas me-
verbis: “Muito obrigado, meu coman- XX, só tem conversas de uma luminosi- didas de austeridade, ou irritado com
dante! E pode V. Exa ter a certeza de dade estranha nos tempos que correm… uma qualquer troica, que apoquenta a
que o primeiro alemão que eu mandar maioria de nós… O 401 da Marinha,
pró maneta, há-de ser à saúde do meu Num outro dia, particularmente difícil, ex-fuzileiro especial, vende paz, a
comandante” (…). andava eu embrenhado nos meus pró- quem a souber aproveitar… Na verda-
prios fantasmas e apressava-me em si- de, neste meu mister de médico, pou-
In Os Fantasmas do Rovuma, a epo- lêncio, atira-me o 401 da Marinha com a cos homens conheci que, como o 401,
peia dos soldados portugueses em seguinte sucessão de frases… conseguem elevar-se acima da fragili-
África na I Guerra Mundial, Ricardo dade do mundo, do seu padecimento
Marques, 2012 – Já vi! Já vi bem. Hoje o dia está chu- pessoal e ainda sorrir…
voso ali para o Centro de Medicina Ae-
No recinto do HFAR (Hospital das ronáutica (edifício onde está sediada a Ora, bem a propósito, num destes
Forças Armadas) existem uns altares Cardiologia do HFAR). Tem razão, ó Dou- dias, em viagem de regresso a casa e
de Pedra, junto à estrada principal tor, esta chuva de verão é pior do que a no rescaldo de mais uma crise política
que dá acesso ao bar, quase ao lado neve no inverno. – Até aqui eu não tinha entre nós, ouvi na rádio que a Stan-
da “cafeteria geral”. Nesses altares, proferido uma só palavra e estava um dia dard and Poor´s, uma das agências
transformados em bancos (ou bancos, soalheiro com cerca de 32˚ C. de rating americanas, que classifica a
que alguns transformam em altares) valia de Portugal, tinha, novamente,
encontrei um velho amigo. Trata-se – Então, como vai você? – perguntei eu agravado o nosso risco económico,
de um velho combatente, de Marinha, ainda sério. agravando-nos, consequentemente, a
das guerras de África. Incapacitado dívida… Lembrei-me então do 401 da
por uma explosão de uma mina, ca- Retorquiu prontamente o nosso herói: Marinha…
minha com muita dificuldade e com
a ajuda de “canadianas” – um nome Tresloucadamente, ocorreu-me en-
moderno para as próteses externas, sem tão que é sem sombra de dúvida uma
as quais o nosso herói não se move. pena que estas agências – que indi-
A incapacidade trouxe muitas dificulda- retamente nos governam – não criem
des, de modo que quem o vê na obesi- uma cotação de mercado para o sofri-
dade grisalha, que agora o aflige, não mento humano e para entidades ainda
imaginará o orgulhoso e forte fuzileiro es- mais comezinhas, como a história de um
pecial, que defendeu as cores de Portugal povo e a honra que, apesar do sofrimen-
nos pântanos e tarrafos da então África to, alguns são capazes de exibir. Se valo-
Portuguesa… rizassem o 401 da Marinha e um belo par
de outros velhos militares que conheço,
No primeiro dia em que o revi cumpri- talvez a nossa classificação fosse melhor
mentei de forma simples e ele, fiel a si do que o valor displicente para que inva-
próprio, retorquiu também de forma sin- riavelmente nos atiram…
gela, com um: Mas é claro, nenhum destes pensamen-
tos vale a alegria de um fuzileiro antigo,
– Ora viva. Marinheiros em terra… nem o calor da sua amizade. Que o diga
Nos dias seguintes lá estava ele, so- o 401 da Marinha, os seus antepassados
berbo, na guarita que parece defender, de oito séculos que padeceram por esse
no mesmíssimo altar pessoal. Tem sem- mundo grande e alguns dos ousados lei-
pre uma palavra de simpatia, como se a tores, que suportam estes escritos….
vida fosse maior que si próprio ou todos Um grande abraço ao 401, que já con-
os anjos benéficos se concentrassem no quistou o altar que na alma tão bem de-
seu sorriso. fende…
Cumprimentei-o sempre. Algumas ve-
zes falamos mais, de outras falamos me- Doc
REVISTA DA ARMADA • NOVEMBRO 2013 31