Page 28 - Revista da Armada
P. 28
REVISTA DA ARMADA | 512
ESTÓRIAS 26
TEATRO FLUTUANTE
sto de contar estórias tem o seu preço. Por exem-
Iplo: recordar para além de meio século com as na-
turais falhas de memória e tentar passá-las ao papel,
não é tarefa fácil. E não me refiro ao trabalho, que
para isso ainda há forças, mas sim o reviver esses
tempos, o ir rebuscar à memória os amigos que já
nos deixaram, as suas figuras, as peripécias e irre-
verências próprias da idade, os momentos bons e
maus que todos passámos com igual intensidade e
também com dignidade, as saudades dos familiares
distantes, o convívio nas folgas que a dinâmica do
navio permitia, a camaradagem, as grandes risadas,
e fazer um enorme esforço para não chorar, sem o
conseguir, é obra e paga-se caro.
Mas, passada esta pieguice, vou tentar alinha-
var uma estória passada em 1953, no “Bartolomeu
Dias”, em comissão na Índia, mais propriamente em Foto do autor
Mormugão. Era nosso Comandante o saudoso CMG
Azevedo e Silva.
Graças a um conjunto de artistas de alto gabarito, foi criado autor da peça; a governanta Anoca, pelo Lobato (de sua nature-
um grupo cénico para, objectivamente, alegrar a guarnição e, za careca, que levava uma farta cabeleira postiça, de estopa, esta
ainda e principalmente, os próprios intervenientes. Destaco os gentilmente cedida pelo paioleiro do Mestre); o Chico da Russa,
que, pela força das circunstâncias, mais se evidenciaram neste pelo Reis; e o sobrinho do Zé Pancão, interpretado pelo Vitorino.
trabalho sem rede: o Sarg. Manobra e contramestre Pinto e o 1º No seguimento da conversa entre o Zé Pancão e o sobrinho,
Mar. Artilheiro Vitorino (barbeiro), que escreviam as peças, e o este diz com ar enfático referindo-se ao vinho: “o que se bebe
Lobato (Taifa). Isto, sem desmerecer os restantes. aqui nesta terra é uma zurrapa”. Logo o Zé Pancão ordena à go-
Também, e para o mesmo efeito, é criado um pequeno grupo mu- vernanta que vá depressa à cave e traga uma garrafa do vinho es-
sical “Os Unidos” para acompanhar nas variedades: o signatário, no pecial. “Que marca?”, pergunta ela. “Paiol!”, responde o Zé Pan-
acordeão; 1º Marº Fogueiro Júlio, no trompete; 1º Marº Artilheiro cão, com o ar mais sério deste mundo. A governanta, que tinha
“Ó Magala” (alcunha que lhe ficou pois era assim que ele tratava de andar de cabeça baixa para não roçar no toldo, lá foi, com o
os seus camaradas), em saxofone tenor, e o Marº Artilheiro Gil (era castiçal e vela acesa. Só que ao baixar a cabeça para sair de cena
também alfaiate e na charanga agredia o bombo), na bateria. pegou fogo à cabeleira e por todo o navio soou um “PÔÔÔÔRRA”.
Para as variedades tínhamos dois vocalistas: o Sarg. Cond. Má- A cabeleira a arder foi violentamente atirada ao chão e o Lobato,
quinas Bombas, cantando a “Polana” do João Maria Tudela, e careca, de saia e avental, às voltas e já com as mamas postiças às
o Marº Elect. Cardoso “Vila Franca” no “Fado do Ribatejo”, que costas, apagou o fogo com os pés e saiu furioso.
terminava assim: “as pilecas eram raios, fidalgos iam c’a gente! Indescritível a cena hilariante entre os espectadores e o apreço
Aíííííííóóóóóóóóóóóó!! Tás c’a mosca ou cheira-t´a palha?” E a pelo desempenho dos artistas. O à-vontade no palco, tão natu-
guarnição fazia coro. Ambos excelentes nestas e noutras inter- ral que nem parecia que estavam a representar. O espectáculo
pretações de canções em voga. prosseguiu e em nada foi prejudicado pelo acidente. Tanto assim
O palco foi instalado à popa. Um estrado com 50 cm de altura, que no final foram muito ovacionados, com a plateia de pé, pese
sanefas nos vergueiros e um toldo a cobrir. O “programa”, bati- embora alguns assobios esporádicos e a sempre chamada à cena
do à máquina (original e 4 cópias), passava de mão em mão pe- de todos os artistas. Todos, menos o Lobato, que nunca mais foi
los espectadores que se acomodavam por ante a ré da peça 4. À visto nem achado.
frente, o Sr. Comandante com uma senhora sua convidada; depois, E do mar? Só tenho saudades!
oficiais, sargentos e praças enchendo todos os espaços, ou seja,
lotação esgotada. Feita a abertura com as três pancadinhas de Mo- Teodoro Ferreira
lière logo a orquestra rompeu com um “pasodoble”, aliás pouco 1TEN SG REF
aplaudido, e, pouco depois, a comédia “A Sina Estava Traçada”, da
autoria do contramestre Pinto. As personagens: Zé Pancão, pelo N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico
28 NOVEMBRO 2016