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REVISTA DA ARMADA | 512

          ESTÓRIAS                                                                                         26





         TEATRO FLUTUANTE








          sto de contar estórias tem o seu preço. Por exem-
         Iplo: recordar para além de meio século com as na-
          turais falhas de memória e tentar passá-las ao papel,
          não é tarefa fácil. E não me refiro ao trabalho, que
          para isso ainda há forças, mas sim o reviver esses
          tempos, o ir rebuscar à memória os amigos que já
          nos deixaram, as suas figuras, as peripécias e irre-
          verências  próprias  da  idade,  os  momentos  bons  e
          maus que todos passámos com igual intensidade e
          também com dignidade, as saudades dos familiares
          distantes, o convívio nas folgas que a dinâmica do
          navio permitia, a camaradagem, as grandes risadas,
          e fazer um enorme esforço para não chorar, sem o
          conseguir, é obra e paga-se caro.
           Mas,  passada  esta  pieguice,  vou  tentar  alinha-
          var uma estória passada em 1953, no “Bartolomeu
          Dias”, em comissão na Índia, mais propriamente em                                                      Foto do autor
          Mormugão. Era nosso Comandante o saudoso CMG
          Azevedo e Silva.
           Graças a um conjunto de artistas de alto gabarito, foi criado   autor da peça; a governanta Anoca, pelo Lobato (de sua nature-
          um  grupo  cénico  para,  objectivamente,  alegrar  a  guarnição  e,   za careca, que levava uma farta cabeleira postiça, de estopa, esta
          ainda e principalmente, os próprios intervenientes. Destaco os   gentilmente cedida pelo paioleiro do Mestre); o Chico da Russa,
          que, pela força das circunstâncias, mais se evidenciaram neste   pelo Reis; e o sobrinho do Zé Pancão, interpretado pelo Vitorino.
          trabalho sem rede: o Sarg. Manobra e contramestre Pinto e o 1º   No seguimento da conversa entre o Zé Pancão e o sobrinho,
          Mar. Artilheiro Vitorino (barbeiro), que escreviam as peças, e o   este diz com ar enfático referindo-se ao vinho: “o que se bebe
          Lobato (Taifa). Isto, sem desmerecer os restantes.   aqui nesta terra é uma zurrapa”. Logo o Zé Pancão ordena à go-
           Também, e para o mesmo efeito, é criado um pequeno grupo mu-  vernanta que vá depressa à cave e traga uma garrafa do vinho es-
          sical “Os Unidos” para acompanhar nas variedades: o signatário, no   pecial. “Que marca?”, pergunta ela. “Paiol!”, responde o Zé Pan-
          acordeão; 1º Marº Fogueiro Júlio, no trompete; 1º Marº Artilheiro   cão, com o ar mais sério deste mundo. A governanta, que tinha
          “Ó Magala” (alcunha que lhe ficou pois era assim que ele tratava   de andar de cabeça baixa para não roçar no toldo, lá foi, com o
          os seus camaradas), em saxofone tenor, e o Marº Artilheiro Gil (era   castiçal e vela acesa. Só que ao baixar a cabeça para sair de cena
          também alfaiate e na charanga agredia o bombo), na bateria.  pegou fogo à cabeleira e por todo o navio soou um “PÔÔÔÔRRA”.
           Para as variedades tínhamos dois vocalistas: o Sarg. Cond. Má-  A cabeleira a arder foi violentamente atirada ao chão e o Lobato,
          quinas Bombas, cantando a “Polana” do João Maria Tudela, e   careca, de saia e avental, às voltas e já com as mamas postiças às
          o Marº Elect. Cardoso “Vila Franca” no “Fado do Ribatejo”, que   costas, apagou o fogo com os pés e saiu furioso.
          terminava assim: “as pilecas eram raios, fidalgos iam c’a gente!   Indescritível a cena hilariante entre os espectadores e o apreço
          Aíííííííóóóóóóóóóóóó!! Tás c’a mosca ou cheira-t´a palha?” E a   pelo desempenho dos artistas. O à-vontade no palco, tão natu-
          guarnição fazia coro. Ambos excelentes nestas e noutras inter-  ral que nem parecia que estavam a representar. O espectáculo
          pretações de canções em voga.                       prosseguiu e em nada foi prejudicado pelo acidente. Tanto assim
           O palco foi instalado à popa. Um estrado com 50 cm de altura,   que no final foram muito ovacionados, com a plateia de pé, pese
          sanefas nos vergueiros e um toldo a cobrir. O “programa”, bati-  embora alguns assobios esporádicos e a sempre chamada à cena
          do à máquina (original e 4 cópias), passava de mão em mão pe-  de todos os artistas. Todos, menos o Lobato, que nunca mais foi
          los espectadores que se acomodavam por ante a ré da peça 4. À   visto nem achado.
          frente, o Sr. Comandante com uma senhora sua convidada; depois,   E do mar? Só tenho saudades!
          oficiais, sargentos e praças enchendo todos os espaços, ou seja,
          lotação esgotada. Feita a abertura com as três pancadinhas de Mo-                          Teodoro Ferreira
          lière logo a orquestra rompeu com um “pasodoble”, aliás pouco                                1TEN SG REF
          aplaudido, e, pouco depois, a comédia “A Sina Estava Traçada”, da
          autoria do contramestre Pinto. As personagens: Zé Pancão, pelo   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico



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