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REVISTA DA ARMADA | 518
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 61
PERDIDOS EM COMBATE...
Farto e sonolento, João Sem Medo recorreu então a um método rude que, por contrário à sua índole, raras vezes aplicava (…) primeiro,
um empurrão acompanhado da competente rasteira (…). Depois indiferente ao berreiro do caguinchas, arrastou-o para dentro de uma
gruta, bem seguro pela gola do casaco, e afocinhou-o aqui e ali, pelos recantos escuros, para o dissuadir de medos inventados. (Bem
bastavam os reais). Vês, vês que não há bichos maus?
In Aventuras de João Sem Medo, a propósito do seu oposto João Medroso, de José Gomes Ferreira.
ncontrei-a no parque de estacionamento. Não se recordava do
Emeu nome, mas recordava a minha face e associou-a ao velho
Hospital da Marinha. O marido, velho marinheiro, havia sido meu
doente. Parecia, hoje, perdida. Perdida no Hospital das Forças Ar-
madas (HFAR). Procurava o antigo médico assistente do marido.
Este estava internado num hospital privado. Depois de doença car-
díaca grave, precisou de ser operado. Estava agora nos cuidados
intensivos.
Havia sido avisada, naquela mesma manhã, que as despesas se-
riam elevadas. Pretendia transferir o marido para o Hospital dos
militares (foi esta a expressão usada). Expliquei que a transferência
dependeria de um contacto prévio entre os médicos de lá e os de
cá. Expliquei, ainda, que eram frequentes aquelas transferências,
enfim, que não haveria motivo para preocupação…
Esta situação é o paradigma do dilema dos militares que acredi-
tam que a medicina privada, ou convencionada, é a panaceia que
resolverá, ao longo da sua vida, o apoio em saúde. Na verdade, os
hospitais privados são isso mesmo, privados, e visam o lucro (ou
não fossem suportados por instituições bancárias conhecidas, ou
mesmo fundos de dimensão mundial, focados na multiplicação
económica). Existem países em que quase toda a saúde se baseia
neste modelo (como os Estados Unidos da América, por exemplo, e
múltiplos outros países na América Latina). Nesses países, a saúde é
cara e não tem, claramente, um cariz humanitário. A propósito, nos na instituição militar que serviram, serão sempre apoiadas… será
Estados Unidos, um dos argumentos para o recrutamento militar é a também por isto que existimos… Quanto mais militares compreen-
oferta de cuidados de saúde vitalícios, organizados e grátis… derem esta realidade, mais fácil será melhorar o HFAR, atribuir-lhe
Deste modo, a relação explícita acima (entre o Sem Medo e o um sentido, um propósito…
seu oposto Medroso) ilustra de forma fiel a atitude que os milita- Por vezes a tarefa parece hercúlea, enorme… Noutras vezes são
res apresentam perante o Hospital das Forças Armadas. Recorrem obtidas pequenas vitórias, sempre contabilizadas em vidas salvas
cada vez mais à Rede Privada de Saúde, que facilita a admissão (…é da vida que tratam os hospitais). O HFAR não é (nem nunca
a baixo custo, para ganhar mais tarde, considerando, nas suas será) só um problema de uma única estrutura, de um único ramo,
próprias palavras, o “caso do HFAR como perdido”… Contudo, de uma única direcção. O HFAR diz respeito a todos. Todos os que
frequentemente, têm, eles ou os seus familiares, que penetrar poderão necessitar dos seus serviços, nem que seja por motivos
“nesta gruta, cheia de recantos escuros” e enfrentar, também eles, simplesmente económicos, ou porque o serviço público de saúde
os seus medos. Na verdade, as doenças verdadeiramente graves, (com particularidades próprias) os reencaminha para esta casa…
especialmente as agudas, exigem proventos raramente ao alcance Ora, sempre olhei emocionalmente os lugares. Até hoje, nem sei
do vulgar militar, de qualquer posto, ou ramo… bem se esse olhar é um dom, se é uma perdição (pela qual numa
Nem tudo é perfeito, muito tem que ser melhorado no HFAR… é ou noutra ocasião fui mal compreendido). Também não quero fi-
verdade, é mesmo obrigatório. De uma forma ou de outra, muitos, car simplesmente como o “caguincha” do João Medroso. Quero
“inexplicavelmente”, dadas as dificuldades que ainda encontram, ser, assim não me falte a arte, como o ousado “João Sem Medo”,
procuram o HFAR, mesmo por doenças menos graves. A razão pa- que acredita, muitas vezes contra todas as evidências materiais,
rece ser este sentimento de “estar em casa”… Que ainda se não que tudo é possível… Não aceitarei, nem deve aceitar nenhum mi-
perdeu e deve ser fortemente apoiado. litar, ficar perdido em combate…
As situações descritas atrás de militares “perdidos em combate”
noutras instituições, que em situações terríveis procuram apoio Doc
30 MAIO 2017