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REVISTA DA ARMADA | 534
ESTÓRIAS 44
UM MARINHEIRO EM MARROCOS
Portugal foi sempre um país com pessoas de grandes proezas vidos e contagiados neste espírito de aventura, os comerciantes
marítimas, quer devido à nossa proximidade e lida com o mar e industriais locais ofereceram apetrechos e mantimentos, um
quer devido ao nosso espírito impávido de aventura e bravura. posto de telegrafia sem fios, câmaras insubmersíveis, recipientes
Assim, entre muitas das aventuras, com ou sem sucesso, com estanques para a água, alimentos, etc., sendo todo este material
que tenho “tropeçado acidentalmente”, devido às minhas pes- colocado dentro da embarcação, com 6 metros de comprimento,
quisas em bibliotecas e arquivos, não poderia deixar passar em 2,70 metros de largura e um deslocamento de cerca de cinco
vão uma delas que achei ser meu dever partilhar. toneladas. Era composta por um mastro, com uma vela grande e
Como sabemos, os inícios do século XX foram anos de grandes duas pequenas. Segundo a mesma fonte, esta pequena embar-
desafios à imaginação do homem, pondo à prova as suas capa- cação teria sido construída e oferecida pelos estaleiros Jean Reig,
cidades físicas, intelectuais e humanas. também eles sensíveis e com vontade
Entre estes homens encontravam-se os de participar nesta proeza. Macedo
marinheiros, ou pessoas ligadas à lida atribuiu à embarcação o nome de Anfa,
do mar, que tiveram sempre uma cos- navegando sob bandeira marroquina
tela diferente da restante comunidade, pelo facto de este povo lhe ter oferecido
aventurando-se no desconhecido, dei- as condições necessárias para o efeito,
xando tudo para trás para mergulharem mas não esquecendo, contudo, aquele
numa grande aventura. Pois, pior que patriotismo que todos os portugue-
enfrentar o perigo, só mesmo desafiar ses têm guardado nos recantos do seu
e enfrentar o desconhecido de peito coração.
aberto. Assim, e com todo o equipamento
Então, estando eu a realizar uma das necessário, T.S.F. emissor e recetor,
minhas pesquisas para um trabalho, mais mantimentos, a 8 de junho de
deparo-me com uma notícia publicada 1930, pelas 11:00, hora local, partiu de
no jornal O Século e que me desper- Casablanca, sob uma numerosa assis-
tou a curiosidade. Esta, referente a um tência e escoltado por outras pequenas
marítimo, de nome Macedo que, depois embarcações, o destemido português
de ter trabalhado em vários navios Macedo que rumou a Nova Iorque no
transatlânticos, foi estabelecer-se em seu pequeno veleiro Anfa. Como conhe-
Marrocos. Mas, mesmo antes disso, já cedor do oceano Atlântico, estabele-
um “bichinho lhe mordia as orelhas” e ceu como rota a saída de Casablanca e,
o puxava para uma aventura: realizar “descerá a costa marroquina até além
uma travessia solitária do oceano Atlân- das Canárias, flectindo lentamente para
tico numa pequena embarcação. Ora, a Oeste, até 20O de latitude norte. Ganho
primeira travessia solitária do Atlântico o Mar dos Sargaços, inclinar-se-ha pro-
numa pequena embarcação à vela de gressivamente para nordeste até Hat-
que tenho memória e registo reporta- teras, passando as Bermudas pelo Sul
-nos para o ano de 1876, efetuada por e tomando então, francamente o rumo
Alfred Johnson. norte, até Nova Iorque.” 1
Segundo Macedo, muito antes de Alain O tempo foi passando sem que se
Gerbault, em 1923, ter realizado a sua travessia, já ele teria pen- tivesse qualquer notícia de Macedo quando, passados 157 dias
sado nisso. Como nós sabemos, já é difícil navegar num grande de ter saído de Casablanca, a 12 de novembro de 1930, aporta
navio em pleno oceano, muito mais difícil será, numa pequena em Dakar, alegando que, devido ao mau tempo e condições do
embarcação como a dele, com cerca de seis metros de compri- mar, este destruíra-lhe a pequena embarcação, dando assim
mento e com as condições que à época existiam. Mas Macedo, como terminada esta sua proeza de tentativa solitária da traves-
como português e como homem do mar, estava determinado a sia do Atlântico.
levar por diante esta sua empresa. Tentou arranjar apoios por Embora Macedo não tenha conseguido realizar com sucesso a
parte do governo português, mas sem sucesso. Face a esta ideia, sua aventura, ficou assim registado em memória que os portu-
um jornal local, La Vigie Marocain, tendo conhecimento desta gueses olharam sempre para o mar como um constante desafio
aventura, resolveu apoiar o destemido português, levando a que a ser superado.
os comerciantes e industriais locais oferecessem a Macedo um
conjunto de apetrechos que lhe iriam permitir sobreviver entre Santos Cardoso
quarenta dias a quatro meses. Este seria o tempo que, segundo Guarda 2CL PEM
ele, mediante os ventos, seria necessário para realizar a proeza,
cerca de 5000 milhas náuticas. Tentava com isso superar o tempo
de Alain Gerbault, 101 dias no mar. Embora viesse a realizar mais Notas:
Jornal O Século, 7 de Junho de 1930, p. 13.
milhas, pretendia fazê-lo em menor tempo que o de Alain. Envol- 1
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