Page 32 - Revista da Armada
P. 32
REVISTA DA ARMADA | 571
VIGIA DA HISTÓRIA 129
BOAS INTENÇÕES
iz o povo, que por vezes tem toda a razão no que afirma, de
Dque de boas intenções está o inferno cheio, não sei se assim é
na realidade, mas estou em crer que, a ser verdade, ao caso que
seguidamente relato se aplica inteiramente o ditado popular
Como julgo ser sabido a escravatura foi uma prática comum a
quase todos os extractos sociais, pese embora alguns, nos dias que
correm, o procurem esconder, prática essa quase sempre unicamente
associada ao lucro pessoal.
A consulta do Conselho Ultramarino de 17 de Janeiro de 1685 dá
a conhecer, no entanto, um motivo, bem inesperado aliás, para o
comércio de escravos.
Dado o estado de ruína da ermida de Nª Srª dos Remédios, em
Luanda, os irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento daquela
freguesia, resolveram edificar novo templo, custeado pela Irmandade,
pelas esmolas da população e com um apoio financeiro do governo,
apoio esse que, dadas as dificuldades, não foi de grande monta.
Sendo o dinheiro existente insuficiente para a conclusão da obra,
para se fazerem os ornamentos e para a aquisição de outras peças para
os ofícios divinos e esgotada que estava a possibilidade de contraírem
mais empréstimos resolveu a Irmandade requerer autorização régia
para enviar, uma vez por ano, um patacho, que entretanto haviam
comprado (1), para o Brasil, com quinhentos escravos, requeriam
ainda que tal autorização fosse válida por 10 anos.
O Conselho Ultramarino, considerando que se tratava de uma
obra de grande devoção e que contribuiria para a conversão dos
gentios, pela observação da forma como os católicos veneravam
o seu Deus, propunha que a pretensão obtivesse a concordância
real mas unicamente por um período mais reduzido de tempo,
período esse que julgavam ser suficiente para a obtenção dos 15000
cruzados necessários, verba esta estimada pela Irmandade mas que o
Conselho considera exagerada, evitando desta forma que se tornasse
um negócio para os requerentes e prejudicasse todos os outros
contratantes do tráfico.
A existência da ermida, classificada como valiosa relíquia, leva a
crer que o requerido teve a aprovação régia e que os lucros de tal
actividade não deverão ter sido pequenos.
(1) Para quem se declarava com dificuldades financeiras a aquisição
de um patacho, com capacidade para 500 escravos, ainda antes de se
ter obtido autorização, leva a admitir que, ou haveria uma garantia
prévia ou se tratava de prática habitual corrente .
Fonte: AHU Cod. 49 fol. 136 v
N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
Cdmt E. Gomes
32 MARÇO 2022