Page 30 - Revista da Armada
P. 30
REVISTA DA ARMADA | 572
ESTÓRIAS 79
Autor: 2TEN TSN-ARQ Paulo Guedes “PATADA” DO PRESIDENTE
erminado o 7.º ano, concorri à Escola Naval, ao Instituto regularidade: “Ó Matias, você tem “patada” do Presidente da
2
TSuperior Técnico e Faculdade de Ciências, estas duas últimas República para receber todas as semanas uma encomenda cheia
por imposição paterna. de coisas boas!”
Como não fui aceite na Escola Naval, por não atingir os mínimos Ao que eu respondi: “Comandante, se eu tivesse “patada” do
no exame aos olhos, lá fui para o Técnico. Estávamos em 1968 Presidente não estava metido neste buraco mas sim em lisboa,
e fervilhava o Maio de 68. Rapidamente aquilo pegou fogo, no Estado-Maior, com cordões dourados e a dar volta ao serviço
queimaram-se as capas e as batinas, acabou-se com a sala das às 16:00. O que eu tenho é uma tia-madrinha!”
alunas e mais umas tretas. Depois foi a greve às aulas. A primeira, A minha única tia e também minha madrinha, morava num
foi para apoiar a luta do povo basco. Depois, vieram outras prédio onde morava também um Major da Força Aérea, piloto dos
3
greves. A polícia de choque acabou por aparecer e o Técnico ficou TAM que, quando soube da minha ida para a Guiné, mostrou-se
fechado por largo tempo. disponível para me fazer chegar as encomendas que houvesse.
Entretanto, o meu amigo Hernâni Resende tinha-se oferecido E assim foi, passei a receber às segundas-feiras, de quinze em
para os fuzileiros e foi incorporado no 13º CFORN. Dali a preencher quinze dias, uma grande caixa de cartão, com amêndoas, livros,
o papelinho para ir também foi um instante. Só faltava informar jornais, e sempre com um pão-de-ló acabado de fazer pela minha
a família. Andei a remoer a ideia uns dias e, no dia de Natal, mãe. No domingo, pela tarde, os meus pais levavam a caixa à
durante o jantar com toda a gente à mesma mesa, dei a novidade; minha tia. Pela meia-noite o Sr. Major tocava à campainha e a
4
fui logo acrescentando que assim ficava com o serviço militar minha tia entregava-lhe a caixa. Ele ia para o AB1 , pegava no DC
logo despachado, já que o Técnico estava fechado. Ficou tudo 6 dos TAM e, pelas 7 da manhã, aterrava em Bissau. Entregava a
5
estarrecido, não se ouviu nem uma mosca durante uns momentos. caixa ao Pombo, piloto civil do Rallie e filhos da mesma escola e,
A situação lá se compôs. Depois o meu pai chamou-me à parte pelas três da tarde, lá recebia a caixa.
e disse-me: “Tudo bem”, mas que tinha que acabar o curso nos Estava desvendado o mistério.
anos seguintes.
Lá fui curtindo a Marinha, até que, chegado à Guiné e quando
a porta do avião se abriu e levei com aquele bafo à época das Ricardo Lisboa da Graça Matias, 14º CFORN
chuvas, concluí que me tinha metido numa grande alhada. Acabei In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade
no DFE 4 e em Ganturé, onde estacionámos durante dez meses N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
seguidos, pois na altura os Fuzileiros estavam mal vistos em
Bissau, porque só armavam “granel”. As ligações com o exterior Notas
eram as lanchas que passavam e o avião Rallie , que nos trazia o 1 Avião monomotor de quatro lugares, supostamente alugado, que fazia a ligação
1
correio todas as semanas. entre Bissau e os diversos aquartelamentos onde estacionava a Marinha. Dizia-se
O avião passava por Vila Cacheu e Bigene todas as segundas- que era um segredo bem guardado, pois a Marinha não podia ter aviões, só barcos.
feiras à tarde; sobrevoava Ganturé, o que era o sinal para se enviar 2 Na Armada quer dizer cunha, benesse, etc.
o jipe a Bigene, a três quilómetros de distância, que dispunha de 3 Acrónimo de Transportes Aéreos de Moçambique.
pista de aterragem, para se levar e trazer o correio. 4 Base Aérea de Figo Maduro, paredes meias com a Portela, hoje AT 1.
Além dos sacos do correio, vinha também uma caixa de cartão 5 Adaptação livre, já que é uma expressão muito usada na Marinha para designar
para o Tenente Matias. Isso intrigava o meu Comandante, pela os camaradas da mesma incorporação.
30 ABRIL 2022