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REVISTA DA ARMADA | 579
PRINCÍPIOS DOUTRINÁRIOS DA
MARINHA DE DUPLO USO
transformação na natureza, na intensidade e nos tipos de Marinha mais fechada, concentrada só na atividade militar, não
A ameaças, não permite descodificar verdadeiramente o que poderá compreender o ambiente marítimo onde opera, na sua
constitui hoje um perigo para a segurança interna que não o totalidade, e sofrerá de uma “cegueira seletiva”, contrária aos
seja, também, para a segurança externa, nem distinguir um próprios interesses do Estado.
perigo que deva ser combatido por forças policiais que não O fundamento jurídico de atuação da Marinha em missões
possa requerer o contributo da força militar e vice-versa. Por não militares, no âmbito do exercício da autoridade do Estado
isso, a segurança deixou de ter fronteiras externa e interna, no mar, resulta do exercício de poderes funcionais previstos no
passando a existir uma necessidade crescente de se recorrer direito interno, designadamente, na respetiva lei orgânica, e
à coordenação entre organismos militares e policiais para no direito internacional, que atribui, em diversas convenções
incrementar a segurança nacional. e tratados, legitimidade para atuar aos navios de guerra (que
No mar, esta conjuntura internacional mostrou a necessidade detêm, aliás, um estatuto específico no direito internacional).
de se concertar o desempenho da função de defesa militar e Naturalmente, a multiplicação de atores estatais que exercem
apoio à política externa - funções de marinha de guerra - com esta autoridade nos espaços marítimos pode criar diacronias
o da função de segurança e autoridade do Estado - funções de não conformáveis com os recursos existentes e propiciadoras
guarda costeira – num equilíbrio designado de duplo uso. de atuações incoerentes e difíceis de sustentar.
Foi esta ideia que levou Geoffrey Till, na sua obra “Seapower: O modelo do duplo uso é uma conceptualização que permite
A Guide for the Twenty-First Century”, de 2004, a designar dar resposta a estas diacronias, assentando na premissa da
de ”pós-modernas” as Marinhas que, para além da vertente coexistência e complementaridade de uma atuação militar e não
militar, empregam os seus recursos em tarefas relacionadas militar da Marinha, a partir de um núcleo comum constituído
com a segurança marítima, a manutenção da boa ordem no pela organização, pelos recursos e pela cultura e suportando-se
mar, a garantia do bem-estar das populações, a cooperação e numa lógica de racionalidade económica, através da utilização
a prevenção e repressão da criminalidade marítima, como o eficaz dos meios.
terrorismo, o tráfico ilícito de estupefacientes ou o tráfico de Esta concetualização tem sido reconhecida e acolhida nas
pessoas e de armas. leis orgânicas da Marinha, encontrando também moldura
Também referi, no Caderno Naval n.º 53, de julho-setembro institucional nos diplomas que regulam determinadas atividades
de 2019, que no mar, o modelo de atuação, pela própria nos espaços marítimos e que atribuem competências à Marinha.
natureza dos atores (vestefalianos e não vestefalianos), dos No diploma orgânico da Marinha, aprovado em 2009,
fenómenos (humanos e naturais) e das atividades (económicas, privilegiava-se já uma lógica de economia de esforço e
políticas, militares, criminais, lazer e outras) apresentar-se-á o desenvolvimento de sinergias, através da partilha de
como essencialmente transversal e holístico. Assim, uma conhecimentos e recursos, eixos incontornáveis do exercício
Foto Evans de Pinho
Centro de Operações Marítimas (COMAR) no Alfeite – operando 24h com elementos da Marinha e da Autoridade Marítima Nacional.
4 DEZEMBRO 2022