Page 10 - Revista da Armada
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o REGRESSO
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o táxi parou alguns metros antes da porta. António as dele, tantas vezes incompreendido, e obrigado a recal-
pagou a corrida, desceu, e recebeu das mãos do motorista car o seu orgulho ferido pelos homens. Quantas vezes
a sua pequena mala. Olhou para casa com um sorriso cantava e ria sem que os outros pudessem sequer pensar
amplo. Nada tinha mudado. As casas eram as mesmas, que dentro de si rugia um vulcão, onde os mais díspares
talvez mais descoloridas, mas as mesmas. Ao fundo, sentimentos se chocavam.
a ponte, a igreja, () pequeno café, onde algumas vezes Lembrava , a sua filhinha, tão perto agora, quando no
entrara, não muitas, porque os seus magros proventos não adeus da despedida, agarrada ao seu pescoço, pergun-
lhe permitiam mais. A mulher dos jornais, mais velha, , tava: - Paizinho, voltas logo? - Sim, filha, o pai vol-
parecia já não ter forças para lançar o seu pregão. tará. Enganara um dos seres que eram a razão da sua
O eléctrico passava ronceiro e barulhento. Os passageiros existência, mas a vida adversa não lhe permitira outra
amontoavam-se para conseguir um lugar, e até no rosto coisa.
passivo do velho condutor se adivinhavam as palavras,
Alongou novamente a vista pela rua e lembrou-se de
sempre as mesmas, que pela força do hábito diria
vizinhos e pessoas com quem privara, e para quem cada
a seguir: - Cheguem à frente, por favor.
ausência sua, era mais um passeio turístico, eles que
Recordava-se também de uma lágrima furtiva que jamais tiveram que se afastar dos seus. Poderiam eles
não pudera reprimir, quando há dois anos, por esta algum dia dar valor e compreender o seu sacrifício? Não,
mesma rua, se encaminhava a passos vacilantes para para eles que nunca tiveram necessidade de se ausentar,
o navio que poucas horas depois o levara para longe. que nunca sentiram a dor da saudade dos entes queridos,
Mas agora, sentia-se feliz por regressar a casa, pas- não pensam sequer que o marinheiro pudesse ter um
sados dois longos anos. O seu coração batia com uma
coração tão sensível como o deles.
força louca, como se lhe quisesse saltar do peito.
Eles passavam junto de si, saudando-o, desejando-lhe
Dois anos não era nada na vida de um homem, mas
um regresso feliz. Palavras hipócritas, só palavras ocas!
ele sentira esta ausência, mais que nenhuma outra.
Eles, indiferentes, no seu afã louco, perdiam-se lá na
Pela sua mente começaram a desfilar, então, os acon-
curva da rua, esquecidos já do António, que a passos
tecimentos já passados. Via-se ainda no navio, sacudido
lentos se aproximava agora de casa. Parou uns segundos
pelo constante baloiçar, ouvindo os anseios de cada um,
diante do último obstáculo .. : a porta. Faltava-lhe a res-
as asneiras, as correrias, os gritos e um sem fim de tro-
piração. Apenas um, dois segundos, somente necessários
pelias, e recordou como se sentira velho e sem paciência
para controlar os nervos excitados, para atenuar um
para aturar essa mocidade tão diferente de quando ele
pouco o bater desordenado do seu coração.
também fora moço.
Eles estavam ali, naquela casa. A sua mulher, os seus
Foram dois anos de sofrimento, rodeado de homens,
filhos, todo o seu mundo e a única razão da sua luta
cada qual com a sua história, mas que a todos era pre-
na vida. Tudo o mais esqueceu.
ciso ouvir e compreender. Tantas vezes se tentara isolar,
sofrendo sôzinho as saudades que o consumiam pela De repente, sem saber como, sentiu que as lágrimas
mulher e pelos filhos ausentes. Por eles e para eles se lhe corriam pelo rosto. Sim, chorava, e apenas porque
ausentara. uns pequeninos braços de criança lhe davam as boas-
Queria dar-lhes a instrução que lhe faltou e com -vindas.
a qual poderiam lutar por um amanhã melhor. Um T. CALHANDRO
amanhã sem privações, sem ausências. dolorosas como Cabo R
(I." Prémio da modalidade . Conto. dos Jogos Florais
de /970 do N .R.P . • Comanddnte João Belo»).
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