Page 15 - Revista da Armada
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formação russa (Rimsky-Korsakov, seja melho,r deixar falar, acerca garantia que se tratava da obra de
autor da Scheherazade foi seu dessa noite célebre, um dos cate- um génio. O embaixador da Áus-
professor). Absorveu as inova.ções gorizados espectadores: . tria ria alto e descaradamente e
do impressionismo musical, criado «Não eram decorridos muitos Florent Schmftt chamava,-Ihe estú-
em França por Debussy e Ravel minutos, já os protestos, comen- pido. A princesa de Pourtales
e transposto para a Rússia por tários, risos e chistes enchiam a 'levantou-se, sobranceira, do lugar
Moussorgsky - o autor de Boris sala. Uma parte da audiência era e exclamou: Tenho, 60 anos mas
Godunov. Seduzido pela no'vaarte" abalada por aquilo que conside- foi a primeira vez que alguém
vem fixar-se em Pal1is onde con- rava uma blasfémia e uma tenta- ousou tomar-me por t~la. Por fim
tacta intimamente com esse má- tiva no sentido de destruir a arte Debussy pedia à audiência, em
gico da arte do bailado que foi como tal. Salvo um ou outro mo- ' tom patético, que se conservasse
Diaghilev. Esse encontro foi pro- mento de acalmia da música, a calada para se pode'r o·uvir a.quela
videnciai para Stravinsky e para o orquestra tocava sem que se maravilhosa música.»
mundo da música. O baHet russo pudesse ouvir. O jovem sentado E foi assim que naquela noite,
apresentava então o que de mais atrás de mim, num camarote, um auditório de gente pre,tensa-
requintado se «fabricava,. como Ilevantava-se de vez em quando men~e culta acolheu a «Sagração
espectáculo. Stravinsky cria, para para poder ver melhor o deco,rrer da Primavera», essa composição
o bailado, a múslica colorida do do ballet. Incapaz de dominar por que é hoje universalmente a.ceite
.. Pássaro de Fogo», no estilo im- mais tempo a excitação que o como obra-prima.
pressi.onista, e esse fantástico tomava, começou a bater-me com Isto obriga-nos a uma 'reflexão
.. Petrushka,., atirado já, todo ele, os punhos no alto da cabeça, ao acerca dos juízos críticos que mui-
profeticamente, em direcção ao ritmo da música. E o clamor con- tas vezes fazemos sem termos
futuro da música. Mas Diaghilev tinuou a crescer cada vez mais. bases suficientes para nos p,ro-
era um mago, um génio das artes, Uma senhora levantou-se do lugar nunci.armos.
neste princípio de século. Imagina para esbofete,ar um cavalheiro Não se julgue que a mUSica ,
um bailado com qualquer coisa que, perto dela, pateava. Saint- desse, famoso bailado perde inte-
que evoque a própl1ia raiz do -Saens (compositor francês) decla- resse separada da dança. Ela
Homem; algo de primitivo como a rou que Stravinsky era um «aldra- afirma-se justamente como música
Terra. Idealiza uma festa pagã, bão» e o mesmo pensou o crítico em si, e, é hoje em dia mais
algures nos alvores da Humani- André Capu. Ravel, por sua vez, tocada do • que representada. Os
dade - festa de propiciação ao
Deus da Primavera, fecundadora Stravinsky ladeado pelo Senhor Presidente da República e pelo
da Terra. E o jovem músico com- Senhor Dr. Azeredo Perdigão
preendeu a ideia e ficou impres-
sionado por essa imagem do sacri-
fício de uma rapariga que dança
até morrer extasliada pelo clamor
de uma assembleia primitiva reu-
nida em torno de um círculo de
sábios a,nciãos. E nasceu então
essa obra fundamental do nosso
séc~lo - «Sagração da Primave-
ra,. (Sacre du Printemps), ta1lvez
a primeira o~ra musical verdadei-
ramente moderna. O ritmo e explo-
rado aqui de uma forma bárba.ra,
todo cheio de desencontros e ins-
tabiliidades, criando um ambiente
de rudeza e primitivismo espan-
tosos. A orquestra é tratada de
forma até então insuspeitada. Me-
tais, madeiras e percussão, são
reis nesta música. Os doces vio,li-
nos e violoncelos perderam o pres-
tígio de que gozavam até aí.
Noite de 28 de Maio de 1913!
Estreia-se em Paris o b a i I a d o
«Sacre du Printemps». Mas, talve'z
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