Page 374 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS OE MARINHEIROS/1 00
No reino de Neptuno
«Ao comandante Sousa Machado,
a cujo talento muito devem estas pobres histórias»
m 24 de Março de 1941 , um Em letras garrafais, Neptuno minhou para junto do portaló de bom-
pequeno aviso de 2. a classe ameaçava que a tentativa de ultra- bordo, em frente do qual se alinhava
E da nossa Marinha, em viagem passar a linha, sem autorização, im- uma guarda de honra com marinheí-
de Macau para Timor, atravessou o plicaria sanções. ros empunhando vassouras e esco-
paralelo dos 00. Como é de tradição, O comandante ouviu, atento, o vas com cabo, em posição de «apre-
Neptuno, Rei dos Mares, sentindo teor da comunicação, mas explicou, sentar armas», na prestação das
que lhe devassavam os seus dom!- por fim, que mesmo correndo riscos, honras protocolares devidas às per-
nios, sem licença, promoveu o julga- não poderia atrasar a viagem. Deste sonalidades importantes que entram
mento dos Iransgressores. modo, o navio avançaria sempre. De no navio. S6 depois, e deslocando-
Nos dias que antecederam o seguida, mandou servir ao emissá- -se sempre com majestade, saudan-
acontecimento foi grande a azáfama rio, na despensa de ré, sanduiches e do com gestos lentos da mão es-
de bordo. Uns preparavam a indu- vinho do paiol. querda os que, de um e outra lado, se
mentária que envergaria, com digni- No dia seguinte, vindos das pro- apertavam para o ver passar, se
dade, o velho deus do Olimpo e, tam- fundezas do oceano, e como se encaminhou paraaponte.
bém, o numeroso séquito que o tivessem penetrado magicamente O comandante aguardava-o ali e
acompanharia. Outros, em conciliá- através dos entrefundos do navio, transigiu, sem objecções, na entrega
bulo secreto, procediam à formula- Neptuno e comitiva surgiram no con- temporária do comando do navio.
ção dos libelos de acusação a pro- vés, dos lados da coberta. A guafni- Mas quanto a submeter-se a julga-
nunciar no julgamento. O despensei- ção, curiosa, viu desfilar, além do Rei mento - também ele ia passar a li-
ro de ré, vivendo mais na intimidade dos Mares, que tomava a dianteira, o nha pela primeira vez- não aceitou.
da câmara dos oficiais, fornecia par- padre, o sacristão, os anjinhos, os Talvez que, em seu entender, julgas-
ticularidades menos conhecidas de diabos, os polícias, o juiz, o delegado se que se diminuísse aos olhos da
cada um deles. Dos sargentos, um, do Ministério Público, o advogado de guarnição, ao sujeitar-se a situações
que já passara a linha, confidencia- defesa, o barbeiro e o ajudante, exi- de algum modo atentat6rias à digni-
va alguns fracos dos colegas. E so- bindo cada um deles indumentária dade do Comando. Mas resolveu a
bre as praças não faltavam achegas apropriada, numa improvisação qua- dificuldade com elegância: propôs
dos marujos mais observadores. se milagrosa face aos limitados re- - e logo o Rei dos Mares aceitou-
Tudo isto enquadrado, naturalmen- cursos de bordo. que fosse julgado à revelia, remindo
te, no conheCimento geral que todos Neptuno destacava-se entre to- depois a dinheiro a sentença que lhe
tinham uns dos outros, ao fim de lon- dos. Uma coroa alta, recortada que coubesse.
gos meses de comissão. fora em folha de Flandres, refulgia- Neptuno e comitiva desceram
Na véspera do julgamento, o ofi- -lhe na cabeça, à luz viva de um sol então da ponte e dirigiram-se para o
cial às ordens do Rei dos Mares su- vertical. Uma frondosa cabeleira local do convés onde se armara o tri-
biu à ponte para entregar uma men- branca descia-lhe até aos ombros e bunal. O mobiliário -mesa, bancos
sagem ao comandante do navio. Exi- a face escondia-se-Ihe por detrás de e cadeiras- já estava no seu lu-
bia, na cabeça, um chapéu colonial largas barbas também brancas -da gar. Para Neptuno, o sargento car-
onde sobressaía, destacada, uma alvura do algodão hidrófilo surrupia- pinteiro improvisara um trono, num
âncora entretecida de fio de cobre, e do da botica. Um manto azul, com vi- plano elevado, dominador, a marcar
vestia um casaco negro de oleado, vos brancos, caía-lhe em pregas di- bem a distância entre os deuses, lá
em cujas mangas se alinhavam, in- gnas ao longo do corpo- e nele o no alto do Olimpo, e os humanos, cá
tervaladas, largas tiras de fileti ama- Mestre do navio reconheceu, escan- em baixo, rastejando na Terra.
relo, subindo até aos cotovelos, na dalizado, os panos da embarcação O julgamento dos réus respeitou
simulação dos galões doirados de do senhor Comandante, ligados pela as antiguidades: primeiro, oficiais;
almirante. agulha hábil dos sinaleiros. Na dex- depois, sargentos e, finalmente, pra-
Chegado lá desdobrou lenta- tra erguia, ainda, cravado no cimo de ças.
mente uma enorme folha de papel um pau de craque, o tridente simbóli- Os libelos acusatórios, que o de-
costaneira, enrolada que fora num co da senhoria dos mares, talhado legado do Ministério Público lia com
bocado de pau de vassoura cortado em lata. ênfase, eram acompanhados, de vez
à largura avantajada da mensagem. Em passos lentos, Neptuno ca- em quando, por fortes risadas da as-
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