Page 375 - Revista da Armada
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sistência. Eram como fichas psicoló-
gicas, a denunciar as manias, os ti-
ques, as idiossincrasias de cada um.
Ninguêm era poupado à critica aten-
ta que a longa convivência, no espa-
ço fechado do navio, tanto facilitara.
O advogado de defesa teve uma
actuação frouxa. Parecia, por vezes,
que, pouco isento, ainda reforçava
ambiguamente a culpa dos rêus. E o
juiz, parece que tambêm parcial, sor-
ria cinicamente a cada malêvola in-
tervenção.
As sentenças foram caindo deva-
gar. Comuns para todos as multas
em dinheiro -cujo total reverteria
para a Comissão de Assistência aos
Tuberculosos da Armada-, em li-
tros de vinho, em garrafas de cerve-
ja, variando apenas os quantitativos
de acordo com os vencimentos dos
rêus.
Igual para todos, também, o mer-
gulho no tanque improvisado, cheio
de água salgada, logo por detras do
banco dos rêus, para facilitar o em-
purrão oportuno do barbeiro e aju-
dante, no cumprimento das senten-
ças mandando os culpados a ir de
anilha à tina.
Variantes, conforme a gravidade
das faltas, era o fazer a barba, o ser
penteado, o aparar os calos - para
o que o Figaro dispunha de pente,
navalha, tesouras e pincêis de um
tamanho descomunal, improvisados
para a cerimónia.
Tambêm, por vezes, rêus mais Cem episódios como os que nelas foram
relapsos eram mandados ao confes- ço, no mar calmo. deixando atrás de descntos. e. dlga·se magnificamente, a
si uma esteira branca no reflexo da
so. Mas lá estava o padre misericor- Marinha náo teria tantos encantos nem seria
Lua que, entretanto, nascera e subi-
dioso para tudo perdoar, deixando os táoaliciante.
ranocêu. A vida a bordo. sobretudo a navegar, é
diabos privados das almas pecado-
A Marinha cumprira, mais uma muito dura e vale. nas circunstâncias, o bom
ras porque ansiavam.
vez, uma das suas antigas tradiçôes. humor de alguns para aliviar a tensão e relaxar
Os policias não chegaram a inter- o espfrito. Mesmo os mais sisudos, aqueles
vir, porque ninguém faltou ao julga- E as horas passadas ficariam para que normalmente não acham graça a coisa
sempre na recordação saudosa dos
mento, refugiando-se nos recônditos nenhuma, vivem-nas com prazer. intervindo
marinheiros que tão alegremente as nelas e fazendo, por vezes até, o papel princi-
do navio.
tinham vivido ... pal.
As horas foram correndo ligeiras. É lambem evidente que só um verdadeiro
Silva Braga,
Já o Sol se aproximava do ocaso mannhelfO as pode descrever com realidade.
v/alm.
quando foi julgado o último grumete. porque é indispensavel escrevê-Ias. não ape-
O tribunal encerrou a sessão. N. R. - Esta é a História de Marlnhel- nas com a caneta e com a cabeça. mas tam-
Neptuno desceu do trono. E, recons- ros/100, com a qual o ilustre almirante Silva bem com o coração. que loi o que fez o almi·
rante Silva Braga.
tituído o cortejo, todos se encami- Braga fecha a série. Enfim, acabaram, porqueoaulor, metódi·
nharam para a coberta, ao longo de E, como trata do julgamento da guarnição co como toda a vida foi, estabecera esse limite
de um navio de guerra, numa passagem da
alas que aplaudiam e nelas os pró- de 100.
linha do Equador, parafraseando o autor.
prios rêus, já esquecidos da dureza vamos julgá-lo a ele. É pena, porque sabemos que muitas mais
das sentenças. * licaram por contar ... E é pena tambem porque
elas traduzem o sul generfs espírito naval que
A normalidade da vida de bordo A leitura das suas histórias proporcionou começou mlS caravelas do Infante e há-de
voltava a impor-se. Rendiam-se os a todos os verdadeiros marinheiros -aqueles permanecer vivo enquanto houver navios e
quartos. O sino de bordo, de meia em que sempre puseram a Marinha acima de tudo marinheiros.
e de tOOos- momentos emocionantes por- Endereçamos ao almirante Silva Braga
meia hora, continuava a marcar a
que os levaram a recordar cenas que viveram os nossos agradecimentos pela sua valiosa e
marcha implacável do tempo. O na- a bordo, as que calam mais fundo nas suas desinteressada colaboração que, felizmente,
vio deslizava, parecia que sem esfor- almas temperadas de água sa(qada. vai continuar com outros temas.
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