Page 333 - Revista da Armada
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t;CO  ndo  havia  dinheiro,  nem  havia
         espectáculo.  Pois  bem,  eles  iam  ler o
         número patriótico que queriam.  Se ndo
         arranjasse mais nada. eu próprio escre-
         veria  qualquer coisa.
            Naquela noile, depois de jamar em
         lerra,  em  vez  de  ir passar a  noite  ao
         "Chu-Niong»  ou  de ficar  alé deshoras
         como de costume, regressei cedo a bor-
         do.  Sentei-me,  sozinho,  na câmara dos
         oficiais,  de  lápis  em  punho,  papel na
         frente, à procura de illSpiraçlJo.  E ela lá
         veio, sorrateira, a ajudar nos primeiros
         alexandrirws, mais rápida depois.  lÁpe-
         las  2 ou  3 da  noite  estava  acabada  a
         ",Apoteose».  No dia seguinte, li à rapa-
         ziada o que escrevera.  Estiveram todos
         de acordo em incluir a  versalhada  e o
         cabo Ventura propôs-se para a recitar.
         Nessa  mesma tarde,  o dr.  Menezes Al-
         ves depois de me ouvir os projectos e de
         lera '<Apoteose», prometeu-me um sub-
         sIdio de 500 patacas. Estava salvo o es-
         pectáculo e a honra do convento'!
            Foi esta a primeira e única  vez  que
         «ganhei» dinheiro com os meus versos'!
            Os ensaios prosseguiram em Outu-
         bro e Novembro sem incidemes de assi-
         na/ar.  A  récita ficou  marcada para  30
         de Novembro e graças à cooperaçdo que
         (anws recebendo de numerosas pessoas,
         illStalou-se na «troupe» uma serena con-
         fiança  sobre o êxito do  espectáculo.  O
         Soveral/á ia instilando entusiasmo em-
         bora ndo se poupasse a crfticas, sempre
         aceites de bom grado.  Os papéis femi-
         ninos eram os mais difíceis mas o Lulz
         Marujo  conseguiu,  com  muito esforço,   como  eu  o  encrespasse,  respondeu-me   Os actores, vencido o nervosismo do
         transformar-se  numa  «Providência  Li-  serenamente: - «Deixe lá, senhor tenen-  primeiro minuto, panaram-se à altura.
         nhaça» sogra de pêlo na venta, enquan-  te,  que amanha sai  tudo bem ... ».   O cabo  Ventura recitou a apoteose com
         to  o  Falcoeiras,  fone  e  atarracado,   Viemos a saber, o Sovera/ e eu, que   uma vibraçdo e entusiasmo de que mm-
         tentava  meter-se na pele da  «Perpétua   o fiasco se devera à muita solicitude dos   ca o julgara capaz! O público a princi-
         Lopes»,  tia  solteirona  e  babosa  pelas   sócios  do  Clube  de  Macau.  Quizeram   pio  formal  foi  aquecendo  durante  o
         graças de seu  sobrinho.           confraternizar nesse dia com as praças   espectáculo e Ilda regateou palmas aos
            Os bilhetes venderam-se depressa  e   e vai de lhes oferecer whisky e gin e ou-  improvisados actores. Esquecido o fias-
         muitas pessoas pagaram 50 e 100 pata-  tras bebidas quejandas.  Os pobres ma-  co da  véspera estavamos todos radian-
         cas por entrada, o que na época era uma   rujos,  habituados apenas  ao  «Chateou   tes.  E eu tenninaria aqui este relato se
         quantia  enonne.                   Paiol» de bordo, ficaram  rapidamente   ndo fosse o estranho acontecimento que
            Chegou assim, rapidamente, o dia do   em mísero estado.           se seguiu.
         eflSaio geral.  Eu estava nervoso e impa-  Interrompi o ensaio, antes que hou-  Dois dias depois, todos os membros
         ciente e o Soveral também.  Quando os   vesse mais desgraças e láfomos, eu pa-  da  «troupe»  reuniram-se a  bordo para
         nossos actores começaram a entrar em   ra um lado e o Soveral para outro,  com   apurar os resultados do espectáculo efa-
         cena,  caiu-nos o  coraçdo  aos pés.  Vi-  o nwral em fanicos.       zer a distribuiçdo dos  lucros pelas  ~'á­
         nham  todos com  «pifiJes»  medonhos,  a   O dia  da  estreia foi  um  longo dia.   rias ins/ituiç6es de caridade de Macau.
         trocar os pés e a falar en/arame/ado. A   A rapaziada,já refeita do .. entornão» da   Se a memória me ndo falha,  depois  de
         Dona Perpétua muito mal elllrouxada no   véspera,  trabalhou  com  entusiasmo  a   pagas todas as dívidas, t(nhamos apura-
         vestido que lhe tinham feito , dava  bor-  reparar os  estragos.     do a bonita soma (para a época) de 2300
         dos no palco conw se este fosse um mar   À hora das pancadas de Moliére es-  patacas.
         encapelado.  Depois  pisou  a  cauda  do   tava  tudo  pronto  e  o  moral  era  alto.   Tínhamos connosco a lista de todas
         vestido e caiu desamparada no meio do   A sala estava à cunha.  O ., Toul Ma-  as instituiçOes a contemplar e lá fomos
         chila.                             cau», governador àfreme, encontrava-  de acordo, distribuindo o dinheiro,  uma
            O Ventura recitou a apoteose em voz   -se ali. A própria colónia chinesa estava   a uma, confonne a imponáncia relativa
         monocórdica com soluços à mistura.  E   largamente represemada.      que  lhes  íamos  atribuIndo.  O lll.wituto

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