Page 334 - Revista da Armada
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dos Salesianosfiguram em úllimo lugar   que a guamiçiJo do «Gonçalo Velho,. de-  Quando dei por mim estava no por-
           fia  fisla e, par isso, para lIilo complicar-  cidiu  oferecer ao Instituto dos Salesia-  to exterior.  Os rancares, de braço dado,
           mos mais a operaçtlo, atribuEmos-lhe a   nos.  Sdo 480 patacas, pane da receita   a meio do pono, eram uma numcha es-
           soma que restava: 480 patacos, segun-  da  récita de caridade que demos.   cura, na escuridIJo da noite. Lá mais ao
           do  creio.                           O Padre Superior levantou a vista e   longe  brilhavam  umas  luzes.  Era  o
              Coube-me a mimfazer a distribuiçao   olhou-me fixamente.  O  corpo  estreme-  .. Gonçalo  Velho,..
           dos envelopes.  Fardei-me e Mfui, no dia   ceu, os olhosficaram razos de Mgrimas.   Gritei;  Oh  do tancar!
           seguime,  a  cumprir a  missilo.   Temou falar mas a  emoçl1o  embargou-  E a  voz fresca de «Malia,., tancarei-
              Quando  cheguei  aos  Salesianos   -lhe  a  voz.  Depois  abriu  os  braços,   ra,  respondeu-~ risonha, ao longe: Vai
           pareceu-me  reinar uma cena confusl1o   agarrou-me  e disse  num  soluço:   pronto,  sai-/có  tinente!
           lá dentro.  Encaminharam-me para uma   - É milagre,  meu filho!        A  embarcaçl10 avança e encosta ao
           sala grande, de paredes caiadas e tecto   A exp/icaçao veio depois.  Toda aque-  cais. À popa, gingando o le~ de espar-
           em  caixotilo  de  madeira,  parcamente   la demora, toda a azáfama a que assis-  rela vem Malia,  16 anos nl10 mais, um
           mobilada e com alguns quadros de san-  tira resultara da presença daqueles dois   rosto  lindo que em poucos anos  vai fi-
           tos desesperadamente a pedir restauro.   indivEduos, comerciantes de Macau, que   car cunido e enrugado,  velha antes de
           Ali me deixaram,  dizendo  que o  Padre   tinham vindo exigir O pagamento de dE-  tempo como todas as outras tancareiras.
           Superior  me  receberia  dentro  de  ins-  vidas em atr01.o.  As despesas da  Ordem   -  Sai-kó  vai  no  bordo? pergunta
           tantes.                           tinham  aumentado  desmesuradamente   ela.
              O tempo, porém, foi passando e nin-  com o auxilio prestado aos refugiados de   Aceno que sim com a cabeça e salto
           guém aparecia.  Vi,  05 quadros todos em   Cantilo.  A tesouraria estava exausta.  E   para dentro do  tancar.  Fico  a  olhar a
           detalhe,  contemplei Macau  e a  Monta-  o  dinheiro  que  eu  trazia  na  bolso era   terra que se afasta,  as luzes de Macau
           nha da Guia, detive-me a observar o mo-  igual à  imponlJncia  reclatn.atkl.   que se vl10  confundindo  e  esbatendo à
           ~'imento das sampanas e de dois juncos   O  Padre  Superior tremia  enquanto   medida que ganho o  largo.
           que  lentamente se encaminhavam para   me dava a explicaçao. Depois ajoelhou-  Ma/ia estranha-mi!.  Sabe que eu sou
           o porto interior. De vez em quando, atra-  -se e disse:  Vamos orar meu filho e dar   nonnalml!nJe alegre efalador e que mis-
           vessavam a sala apressados alguns pa-  Graças ao Senhor!            turo na conversa, de forma arrepiante,
           dres e leigos que desapareciam por uma   E  eu,  que  quase  me  esquecera  de   o ml!U ponuguês com as poucas palavras
           porta ao fundo.                   rezar,  ajoelhei a  seu  lado,  e  acompa-  chinesas que aprendi.
              Do Padre Superior nem nOvas nem   nhei-o em silêncio, profundamente per-  -  Que  tem  sai-kó  tinente?  Tá  do-
           matukuJos.                        turbado  também.                   lente?
              A impaciência do jovem tenente que   Quando saE dos  Salesianos  a  noite   Digo-Ihe que nl10  com a  cabeça.
           entl10 era, crescia a olhos vistos.  Sentir-  caEra já.  Uma  noite fria  de  Dezembro   O  bojo iluminado do  «Gonçalo Ve-
           -me ali abandonado, esquecido do dono   com um céu sem nuvens onde as estre-  lho»  está próximo.
           da casa, quando trazia no bolso um en-  las iam aparecendo, incontáveis, treml!n-  Os ~us pensamentos agitam-se ain-
           velope recheado como dádiva graciosa!   do  como  luzes  de  velas  sopradas  por  da,  confusos, penurbados. Mas, inexpli-
              - Isto é demais.  estIlO a mangar c0-  brisa  ligeira.            cavelmente,  qualquer  coisa  cOml!ça  a
           migo.  Se se demora um pouco mais vou-  Fui andando a pé, absono, a cami-  cantar dentro de mim.  O esforço de to-
           -me embora de vez  - rosnava eu,  com   nho do  porto exterior.     dos resultara.  Milagre ou simples coin-
           os meus botOes.                      O movimento nas ruas era  intenso.   cidência algo de bom e belo aontecera.
              Finalmente a pona do fundo abriu-  Acendiam-se as l1Jmpadas, brilhavam as
           -se.  Saiu primeiro um chinês rotundo e   luzes de néon.  Uma multidiJo enchia os
           anafado e um individuo macaense que eu   passeios  e  as  ruas  quase  impedindo  o
           vagamente conhecia de vista. Atroz vinha   trlJnsito dos raros autom6veis. E aquela
           o  Padre Superior, alto,  uma figura as-  multiddo andava,  corria, falava,  grita-
           cética  num  hábito  negro.  Passou  por   va enquanto das casas ilumintUÚ1s vinha
           mim,  cumprimentando  ligeiramente  e   o ruEdo das pedras do fan-tan,  dos an{-
           acompanhou os outros dois à  pana de   fices que trabalhavam em locais minús-
           saEda.                            culos, das gentes que se divertiam, dos
              Depois caminhou ao meu encontro,   refugiados  que tinham fome.
           a passos lentos e firmes e perguntou-me,   Era um verdtuJeiro formigueiro humano.
           num  ponuguês  com  ligeiro  sotaque   Era  isso  entoo.  Éramos  fonnigas
           italiano:                         cumprindo gestos rituais desempenhan-
              - Em  que posso  ser-lhe  útil,  meu   do  tarefas,  numa predestinaçl10 herda-
           filho?                            da,  geraçl10  após geraçl1o.
              Preparei-me para responder desabri-  Éramos  apenas  elos  dumtJ  cadeia
           damente.  Mas  notei-lhe o  rosto  mace-  forjada  por um Destino  Superior.  Ele-
           rado,  as  olheiras  fundas,  um  ar  de   mentos inconscientes cumprindo um ri-
           profunda preocupaçl1o.  Qualquer coisa   tual atávico.
           me impediu de lhe atirar à cara as pala-  Os pensamentos cruzavam-se em tur-
           vras que remoera durante a longa espe-  bilhiJo dentro da minha cabeça.  Tinlul
                                                                                                     M.  do  Vale,
           ra.  E  limitei-me  a  dizer num  tom  que   necessidade  de  estar  só,  de  reflectir.        CAIM
           pretendia ser seco e  altivo:     Tinha  que ir para bordo e  refugiar-me
              -  Trago  aqui  comigo,  o  dinheiro   no meu camarote.           ••••••••••••••••••

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