Page 51 - Revista da Armada
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a  mostrar-se por outras tantas portinholas, e levando
          à  proa o  busto do grande navegador que lbe dera o
          nome, a nau Vasco da Gama ia receber a honrosa visita
          da rainha D. Maria II, acompanhada do rei D.  Fernan-
          do, seu esposo, dos prínCipes D.  Pedro e  D.  Lutz, de
          alguns membros do ministério e do major-general da
          Armada, aJám  das damas e  mais áulicos (2)  que em
          tais actos costumam completar a régia comitiva.
             O dia estava maravilhoso e centenas de embarca-
          ções de todos os tipos sulcavam as águas mansas do
          rio. A  nau embandeirada em arco com cordão de res-
          peito preso aos portalós isolando o espaço do mastro
          de portaló de bombordo deixando  rasar na água as  -
          grande para ré (onde só podiam transitar oficiais de
          grande uniforme), as câmaras com d~corações riquís-
          simas, asseio impecável em todas as cobertas, escadas

                                                              A  nau  ~ VllSco da  Gama_ fundeada com as velas  a secar.
          franjas de ricas alcatifas ...  Tudo pronto para a  festa.
             De repente, um tiro de artilharia disparado do Cas-
          telo de S. Jorge anunciou a largada da real flotilha do   foi  a  amarração, içaram-se as velas e  o  navio seguiu
          cais do Arsenal. Içou-se no mastro o grande pavilhão   rio abaixo a  demandar a  barra.
          real, a banda de música de bordo e a guarda de honra   A saída de um navio envolve sempre uma grande
          tomaram  posiçõe!ô,  parte da marinhagem  trepou às   incógnita. Quem pode adivinhar o que o espera e aos
          vergas  para os vivas  da Ordenança enquanto a  res-  homens que nele vão embarcados?
          tante formava a um bordo e outro e a artilharia da nau   Já fora da barra e em pleno mar, o vapor Mindello
          salvava com 21 tiros, bem como todos os outros navios   que a tinha acompanhado. levando a bordo as entida-
          de guerra surtos no rio e  as fortalezas de terra.   des citadas anteriormente,  virou  de bordo,  perante
             Entretanto, aproximava-se do navio o bergantim   calorosos vivas de parte a  parte.
          real e  demais galeotas que o comboiavam, com cen-     No dia 11. depois de uma viagem tranquila, o vigia
          tenas de remos batendo cadenciados na água, o que,   deu o sinal de terra à  vista - a  formosa ilha da Ma-
          só por si, constituía um espectáculo admirável.     deira. A nau aproximou-se da costa mas, com enorme
             Então, o  comandante da nau, o  distinto capitão-  decepção de toda a gente que não estava no segredo
          -de-mar-e-guerra Pedro Alexandrino da Cunha, do Con-  dos  Deuses, claro,  guinou  180 graus e  fez-se  nova-
          selho de Sua Majestade, acompanhado do imediato,    mente ao mar. Depois, entrando e  saindo o  porto do
          foi postar-se no patim inferior do portaló, enquanto em   Funchal, sem nunca fundear nem ninguém ter ido a
          cima, formando alas do portaló para a câmara, ficara   terra  a  não  ser o  comissário  de  fazenda,  uma  vez,
          o estado-maior composto por cerca de 50 pessoas, en-  prosseguiu a  sua viagem rumando às ilhas Canárias
          tre primeiros e segundos-tenentes, guardas-marinhas,   que viram de longe, no dia 20, singrando dai em diante
          aspirantes,  médicos,  capelão,  oficiais  de  fazenda  e   a  aproveitar o  vento que era de feição.  até ao dia 4
          cirurgiões.                                         de Abril, em que a  rainha D.  Maria II completava 30
             O b~rgantim atracou, recomeçaram as salvas, e a   anos de idade e cujo aniversário o comandante queria
          música tocou o hino real, no meio dos vivas das praças,   festejar.
          da gente das embarcações e da que na margem assis-     Apesar de correrem rumores de que na câmara dos
          tia à  cerimónia.                                   guardas-marinhas se conspirava contra o comandante,
             Durante a visita que fez ao navio, a  rainha, brasi-  a  verdade é  que todos se juntaram a  ele para que as
          leira de nascença e ainda nova, mostrou-se maravilha-  comemorações tivessem o  maior brilho possível.
          da por tudo que ali via, vaticinando a brilhante figUl"a   E. diz o  autor de MA  Última Nau Portuguesall:  .A
          que  a  nau  iria fazer  no Rio  de Janeiro.        partir d'ali tudo foi festa. Tudo ... não. A fenos. e preso
             Terminada a  visita retirou-se para terra e  novas   no porão, jazia. um desses infelizes que, n'um momento
          salvas. no mar e em terra, davam por finda a festa que   de allucinaçAo e. às vezes, de justificada indignação
          a todos proporcionara momentos de verdadeira satis-  - que lhes não é pernútida - partem a brÔnzea cadeia
          fação.                                             da disciplina, faltando ao respeito ao seu superior. Este
                                                              infeliz esperava o resultado. ou dos artigos de guerra
             Estávamos a 8 de Março de 1849. A bordo, apron-  e marinha. ou da alçada ampl1ssima e  poder discricio-
          tava-se a partida. Içaram-se as embarcações, a lancha   nário do comandante ( ... ). Muito de propósito se esco-
          e  os escaleres dentro do navio e  a  canoa branca do   lhera  o  pretexto  no  motivo  da  festa  para  suplicar
          comandante nos turcos da popa. De terra muitas em-  clemência e  indulto. Mas o comandante, cuja feitio já
          barcações traziam familiares e amigos das cerca de 700   conhecemos, aquelle superior que em serviço só res-
          praças da guarnição da nau. Alguns escaleres larga-  pondia pelos monosyllabos sim ou não, sem olhar para
          ram do Arsenal com o  ministro da Marinha. o major-  o  official que lhe dava contas ou pedia instrucções,
          -general  da  Armada  e  outros Joficiais  que  vinham   esse homem era todo disciplina ( ... ) sob aquelle exte-
          honrar o bota-fora da Vasco da Gama. E, largada que   rior sombrio e  olhar carregado que nos privava de o
                                                             encarar, escondia Pedro Alexandrino uma alma cheia
             (2) -  Cortes.!os.                              de nobreza,  que,  sem ser expansiva, se denunciava

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