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Marujo em férias
                               Marujo em férias


                                           “O troco”
                                            “O troco”



             ou de uma região onde o  enfiando-o de seguida no cabo  seu “legítimo” direito, pediu  Olhe, excelência, até vencia
             Ribatejo acaba e a Beira  da sua “sachola”, colocando-o  uma quantia, por sinal, exorbi-  jorna ...”.
         S Baixa começa.           ao ombro e prosseguindo o  tante, pelo molho de ramos de  Mas foi um roubo, Sr.
           O poder económico da    regresso.                  eucalipto.                Manuel do Mogão, interpelou
         maioria das famílias na zona é  Mas teve azar: o guarda  da  Claro está que o Navalho  o Juiz – ou não lhe parece
         nivelado por baixo.       celulose apanhou-o logo a  não pagou.                assim? Sim, Excelência, talvez
           E o que desnivela, mais ou  seguir, confiscou-lhe a carga, e  E foi parar ao banco dos  seja ... Respondeu o “entendi-
         menos, é o cabedal das famí-  fez a respectiva participação  réus, no Tribunal de Abrantes.  do”. Que de seguida foi dis-
         lias, por serem donas de maior  dos danos causados aos  No dia da audiência, como é  pensado pelo Juiz.
         ou menor parcela de floresta,  eucaliptos.           de norma, os advogados argu-  A audiência prosseguiu o seu
         no nosso caso, pinheiral.   Como é de tradição na zona,  mentaram contra e a favor,  ritual.
           Para que a história ganhe  estes litígios ou semelhantes,  conforme a causa defendida.  Foi chegado o momento da
         mais conteúdo, adiantemos                                                      pronúncia da sentença.
         que é verdadeira.                                                                O Magistrado, homem de
           Para já localizemo-la geo-                                                   cabelos grisalhos, e, com certe-
         graficamente: passa-se num                                                     za, ciente de muitas sentenças
         cantinho, no norte do Ribatejo,                                                justas e injustas saídas da nossa
         sul da Beira Baixa, nos conce-                                                 justiça.
         lhos de Sardoal, Vila de Rei e                                                   Olhando para o réu, interro-
         Mação, terminando lá muito                                                     gou: “Sr. Navalho tem alguma
         dentro da Beira Alta.                                                          coisa a declarar?” O Navalho
           Este espaço é ocupado pela                                                   olhou para o seu advogado e
         maior floresta de pinheiros da                                                 disse: “Não, excelência”.
         Europa.                                                                          De imediato o Juiz levantou-
           Pertence a cerca de 10.000                                                   -se, ficando sério e hirto, como
         proprietários em propriedade                                                   impondo ainda mais silêncio e
         horizontal. Infelizmente nos                                                   respeito, manteve essa postura
         dias que correm grande parte                                                   um certo tempo.
         desta área foi destruída pelo                                                    De repente, com o dedo
         fogo e ocupada pelos eucalip-                                                  indicador estendido apontava
         tos das multinacionais do ramo                                                 para o “entendido” e disse: “Sr.
         da celulose.                                                                   Manuel do Mogão, queira fazer
           Daí, o crescente desertar das                                                o favor de me dizer que sen-
         gentes. Mas isso é de outra                                                    tença ditaria o Sr. ao Réu se
         história.                                                                      fosse o Juiz?” O “entendido”
           É neste cenário econó-                                                       ficou largos segundos embas-
         mico/ambiental que se desen-                                                   bacado. Balbuciando apenas:
         rola a história, que me propo-                                                 “Bem eu ... Bem eu ...” Cora-
         nho contar-vos: o Sr. Navalho                                                  gem homem” – Disse o Juiz em
         era jornaleiro de profissão.                                                   tom amigo. – “Bem, Exce-
           Aos domingos, depois da                                                      lência, ele roubar roubou, mas
         missa e até ao pôr do sol, como  normalmente não passam do  Foram ouvidas testemunhas  trabalhar também trabalhou.
         não tinha jorna, amanhava os  lugar. É convocado pelas partes  das duas partes. Lá esteve tam-  Cá para mim há empate”.
         seus “bocadinhos”, que eram  litigiosas o parecer de um ou  bém “o entendido”, de quem o  Então o Juiz, sentando-se, reto-
         uns 3 ou 4, separados a razoá-  mais entendidos na matéria  Meritíssimo Juiz quis parecer  mou a palavra e disse: “Quer o
         veis distâncias entre si. Ti-  que opinam sobre danos e  fundamentado sobre a conten-  Sr. dizer na sua de que o réu
         nham-lhe cabido de partilha  reparos.                da em causa.              não deve pagar nem receber,
         por morte de seus pais.     E as desavenças terminam  Homem já idoso, calejado  não é?”.
           Foi num desses domingos à  bem, quase sempre na taberna  no manejo das madeiras e  O Manuel de pé, impertiga-
         tarde, quando o Navalho re-  com os copos em exercício de  resinas.            do, a custo pronunciou: “Não,
         gressava do amanho da “horta  “sobe e desce”.         À pergunta do Juiz, “botou  Excelência, ele já pagou e já
         das cernadas”, ali para as ban-  Mas neste caso a celulose  fala assim”: “Excelência, de  recebeu. O Sr. Juiz deve é con-
         das de Alcaravela, que a coisa  entendeu ter chegada a oportu-  acordo com o pedido das  ferir o troco ...”
         aconteceu.                nidade de dar uma boa de uma  partes em zanga, botei uma  O troco está certo. O réu
           Ao passar pelo eucalipal do  lição aos inimigos do eucalip-  olhadela a preceito nos  pode sair sem mais encargos”.
         “Mogão Cimeiro”, pertença de  to. Não tendo sequer em conta  eucaliptos aonde o Ti Navalho  Sentenciou o Juiz do Tri-
         uma celulose da zona, resolveu  o parecer do “Ti Manel do  colheu os galhos.   bunal da Comarca de Abrantes.
         “sacar da naifa” e com os re-  Mogão”, que, na circunstância,  Cá para mim, foi tarefa bem  Decorria o ano de 1969.
         bentos mais pequenos dos eu-  foi convocado como experto  feita, para a desenvoltura do
         caliptos fez um molho que  na matéria a opinar.      tronco e arredar o perigo dos        Geraldo Lourenço
         amarrou com o próprio cinto,  A celulose, no exercício do  fogos.                              CABO SE REF.

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