Page 358 - Revista da Armada
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Marujo em férias
Marujo em férias
“O troco”
“O troco”
ou de uma região onde o enfiando-o de seguida no cabo seu “legítimo” direito, pediu Olhe, excelência, até vencia
Ribatejo acaba e a Beira da sua “sachola”, colocando-o uma quantia, por sinal, exorbi- jorna ...”.
S Baixa começa. ao ombro e prosseguindo o tante, pelo molho de ramos de Mas foi um roubo, Sr.
O poder económico da regresso. eucalipto. Manuel do Mogão, interpelou
maioria das famílias na zona é Mas teve azar: o guarda da Claro está que o Navalho o Juiz – ou não lhe parece
nivelado por baixo. celulose apanhou-o logo a não pagou. assim? Sim, Excelência, talvez
E o que desnivela, mais ou seguir, confiscou-lhe a carga, e E foi parar ao banco dos seja ... Respondeu o “entendi-
menos, é o cabedal das famí- fez a respectiva participação réus, no Tribunal de Abrantes. do”. Que de seguida foi dis-
lias, por serem donas de maior dos danos causados aos No dia da audiência, como é pensado pelo Juiz.
ou menor parcela de floresta, eucaliptos. de norma, os advogados argu- A audiência prosseguiu o seu
no nosso caso, pinheiral. Como é de tradição na zona, mentaram contra e a favor, ritual.
Para que a história ganhe estes litígios ou semelhantes, conforme a causa defendida. Foi chegado o momento da
mais conteúdo, adiantemos pronúncia da sentença.
que é verdadeira. O Magistrado, homem de
Para já localizemo-la geo- cabelos grisalhos, e, com certe-
graficamente: passa-se num za, ciente de muitas sentenças
cantinho, no norte do Ribatejo, justas e injustas saídas da nossa
sul da Beira Baixa, nos conce- justiça.
lhos de Sardoal, Vila de Rei e Olhando para o réu, interro-
Mação, terminando lá muito gou: “Sr. Navalho tem alguma
dentro da Beira Alta. coisa a declarar?” O Navalho
Este espaço é ocupado pela olhou para o seu advogado e
maior floresta de pinheiros da disse: “Não, excelência”.
Europa. De imediato o Juiz levantou-
Pertence a cerca de 10.000 -se, ficando sério e hirto, como
proprietários em propriedade impondo ainda mais silêncio e
horizontal. Infelizmente nos respeito, manteve essa postura
dias que correm grande parte um certo tempo.
desta área foi destruída pelo De repente, com o dedo
fogo e ocupada pelos eucalip- indicador estendido apontava
tos das multinacionais do ramo para o “entendido” e disse: “Sr.
da celulose. Manuel do Mogão, queira fazer
Daí, o crescente desertar das o favor de me dizer que sen-
gentes. Mas isso é de outra tença ditaria o Sr. ao Réu se
história. fosse o Juiz?” O “entendido”
É neste cenário econó- ficou largos segundos embas-
mico/ambiental que se desen- bacado. Balbuciando apenas:
rola a história, que me propo- “Bem eu ... Bem eu ...” Cora-
nho contar-vos: o Sr. Navalho gem homem” – Disse o Juiz em
era jornaleiro de profissão. tom amigo. – “Bem, Exce-
Aos domingos, depois da lência, ele roubar roubou, mas
missa e até ao pôr do sol, como normalmente não passam do Foram ouvidas testemunhas trabalhar também trabalhou.
não tinha jorna, amanhava os lugar. É convocado pelas partes das duas partes. Lá esteve tam- Cá para mim há empate”.
seus “bocadinhos”, que eram litigiosas o parecer de um ou bém “o entendido”, de quem o Então o Juiz, sentando-se, reto-
uns 3 ou 4, separados a razoá- mais entendidos na matéria Meritíssimo Juiz quis parecer mou a palavra e disse: “Quer o
veis distâncias entre si. Ti- que opinam sobre danos e fundamentado sobre a conten- Sr. dizer na sua de que o réu
nham-lhe cabido de partilha reparos. da em causa. não deve pagar nem receber,
por morte de seus pais. E as desavenças terminam Homem já idoso, calejado não é?”.
Foi num desses domingos à bem, quase sempre na taberna no manejo das madeiras e O Manuel de pé, impertiga-
tarde, quando o Navalho re- com os copos em exercício de resinas. do, a custo pronunciou: “Não,
gressava do amanho da “horta “sobe e desce”. À pergunta do Juiz, “botou Excelência, ele já pagou e já
das cernadas”, ali para as ban- Mas neste caso a celulose fala assim”: “Excelência, de recebeu. O Sr. Juiz deve é con-
das de Alcaravela, que a coisa entendeu ter chegada a oportu- acordo com o pedido das ferir o troco ...”
aconteceu. nidade de dar uma boa de uma partes em zanga, botei uma O troco está certo. O réu
Ao passar pelo eucalipal do lição aos inimigos do eucalip- olhadela a preceito nos pode sair sem mais encargos”.
“Mogão Cimeiro”, pertença de to. Não tendo sequer em conta eucaliptos aonde o Ti Navalho Sentenciou o Juiz do Tri-
uma celulose da zona, resolveu o parecer do “Ti Manel do colheu os galhos. bunal da Comarca de Abrantes.
“sacar da naifa” e com os re- Mogão”, que, na circunstância, Cá para mim, foi tarefa bem Decorria o ano de 1969.
bentos mais pequenos dos eu- foi convocado como experto feita, para a desenvoltura do
caliptos fez um molho que na matéria a opinar. tronco e arredar o perigo dos Geraldo Lourenço
amarrou com o próprio cinto, A celulose, no exercício do fogos. CABO SE REF.
32 NOVEMBRO 98 • REVISTA DA ARMADA