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HISTÓRIAS DA BOTICA (10)
A tempestade e o sorriso
A tempestade e o sorriso
ncontrei hoje um rabisco rude, num nas suas viagens. Eu próprio tinha uma normal, o sofrimento torna-se um padrão
papel sujo, já com algum tempo. Esse visão romântica do mar até ser afligido aceitável... Pense nisto o caro marinheiro:
E rabisco lembrava uma tempestade, pelo enjoo, até sentir o peso das vagas em que outra profissão se trabalharia com
que aconteceu há já alguns anos, em sobre o costado do navio, até viver, enfim, um balde por perto, para despejar aquilo
Dezembro, nos Açores...Falava, também, o desconforto da distância e o silêncio que o estômago, a tempos regulares, se
de saudade, pois era Natal, que cada um profundo da saudade – que aflige todos os recusa a aceitar? Em que outra situação,
vivia de modo próprio e íntimo... marinheiros, mesmo os que não o confes- em profundo sofrimento físico, que em
sam. muitos casos, nem os modernos fármacos
A maior parte das pessoas tem do mar conseguem mitigar, se retomaria sem hesi-
uma ideia poética e dos marinheiros Nas tempestades, ocorrem estados físi- tação um posto de trabalho? Que outras
alguns terão, mesmo, a noção de que cos e estados de alma, inimagináveis em pessoas gracejariam com a sua própria
levam uma vida regalada e de passeio, terra. O inacreditável assume-se como náusea, a quem chamam carinhosamente
gregório?
Dito de outra forma, em que outro
ambiente se desenhariam planos de bata-
lha e se planeariam ataques à mistura com
o aroma de um almoço provado duas
vezes e se manteria a capacidade de sorrir
a esse propósito? Estou seguro que em
nenhuma outra profissão se toleraria tanto,
de forma tão leve... Além do mais, a
Marinha é democrática na distribuição do
sofrimento, já que o enjoo aflige, de forma
imparcial, comandante ou grumete.
Ao contrário, deste tipo de atitude só-
bria, deste sentido do dever, que pre-
senciei vezes sem conta, são frequentes,
noutras profissões, os atestados por gripe e
os impedimentos súbitos muitas vezes por
doenças que não existem...Contudo,
dessas outras profissões falarão, porventu-
ra, outros médicos com perspectivas dife-
rentes da minha, com outro sentido da
realidade e, possivelmente, com muito
mais arte...
Mas, voltemos à tempestade em causa,
que foi das mais medonhas que presen-
ciei. A corveta, em que estava embarcado,
largou às pressas do porto da cidade da
Horta. O vento era violento, de tal ma-
neira que havia contentores avançando
sobre o navio. Tinha havido um pedido de
socorro – um iate supostamente em perigo
de naufrágio. Durante 4 dias fomos fusti-
gados por uma ventania infernal e ondas
que faziam crer que estávamos num sub-
marino, mesmo quando observadas da
ponte.
Ninguém se tinha em pé mais que o ne-
cessário. As cadeiras da Câmara de Ofi-
ciais balançavam vertiginosamente e a
superestrutura, da já gasta embarcação,
rangia a um ritmo caótico, numa sinfonia
intrigante e ameaçadora. Quis ir à ponte
filmar o fenómeno (coisas de médico...),
quando, na asa da ponte, fui presenteado
pelas emanações gástricas de um grumete
na sua primeira viagem, que não respeitou
30 JULHO 2001 • REVISTA DA ARMADA