Page 253 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
             Património Cultural da Marinha


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                     29.O QUADRO DA BATALHA NAVAL DO CABO DE S. VICENTE


               Um dos melhores quadros do nosso Museu de Marinha deve-se a Antoine Léon Morel-Fatio e representa a batalha do
             Cabo de S. Vicente, travada entre as forças liberais e absolutistas, no ano de 1833. O autor não está na galeria dos “grandes
             pintores franceses” (que, aliás, é riquíssima), mas destacou-se na representação de quadros navais, tendo sido um dos
             primeiros pintores oficiais da Marinha Francesa, contratado pelo ministério pelas suas capacidades artísticas e pela sua dedi-
             cação aos temas marítimos de todos os tipos. O Cercle de la Voile de Paris, fundado em 1858, ainda hoje exibe a sua ban-
             deira, cujo desenho se deve a Morel-Fatio. Foram por ele registados alguns dos mais significativos eventos de guerra naval,
             ocorridos entre o final do século XVIII e princípio do XIX que, em muitos casos, resultaram da observação directa do autor,
             como acontece na representação do ataque a Argel pelo Almirante Duperré (1830) e os quadros sobre a guerra da Crimeia
             (1854-55). A pintura em óleo sobre tela (317 x 200 cm) que se exibe no Museu de Marinha pertenceu ao infante D. Afonso
             Henriques – irmão do rei D. Carlos –, passando para o espólio da viúva, a Sra. D. Nevada Stoody Hayes (ou Nevada de
             Bragança), a quem a Fundação da Casa de Bragança a pretendeu adquirir. Entretanto, o Museu de Marinha manifestou a
             vontade de ficar com ela – dada o seu valor artístico e a importância histórica – e o seu pedido foi compreendido pelo
             Dr. António Luís Gomes, que presidia à Fundação. Mas só passou para o património da Marinha após a morte da proprie-
             tária, em 1941, e por compra directa efectuada durante o processo de habilitação de herdeiros.
               A batalha do Cabo de S. Vicente teve uma importância decisiva no desfecho da guerra civil que, em 1832-34, opôs as
             forças liberais, fiéis à entrega da coroa de Portugal a D. Maria, filha de D. Pedro e as absolutistas que preconizavam a
             entronização de D. Miguel. Este último tinha aproveitado as circunstâncias em que lhe foi entregue a regência, ao ponto de
             pretender assumir-se como rei e o facto provocou a vinda de D. Pedro do Brasil para dirigir pessoalmente uma revolta contra
             o usurpador. Inicialmente conseguiu reunir uma força militar e um governo nos Açores, assumiu ele o cargo de regente e,
             em 1832, seguiu para o continente com intenções de repor a sua filha no trono. As forças liberais desembarcaram na praia
             de Pampelido (Mindelo), e contavam com um apoio maciço da população e das guarnições militares que julgavam fiéis
             defensores da Carta Constitucional, mas tal não aconteceu. A guerra prolongou-se, as tropas de D. Pedro ficaram cercadas
             no Porto e a situação apresentava-se como desesperada, quando foi decidido abrir uma nova frente de combate a sul.
               Uma decisão acertada que, inicialmente, viria a funcionar como diversão, mas que, depois, se veio revelar muito útil
             para uma rápida aproximação a Lisboa, com o isolamento de D. Miguel que se viu forçado a capitular. E um momento que
             marca a viragem da situação militar para o lado dos liberais é, sem sobra de dúvida, quando a esquadra de D. Miguel é
             derrotada perto do Cabo de S. Vicente, pelas forças fiéis a D. Maria, comandadas no mar pelo Almirante Carlos Napier.
             Depois do desembarque em Cacela (praia da Alagoa), os liberais, num ápice, tomaram conta de quase todo o Algarve. A
             sua situação apenas apresentava uma fragilidade, mas essa fragilidade poderia ser decisiva para o desenrolar dos combates:
             tratava-se do domínio sobre o espaço marítimo português onde se teria de fazer a ligação das forças colocadas. Se a
             esquadra de D. Miguel dominasse a faixa atlântica, tudo estava perdido. E Napier tinha a noção disso, quando se decidiu
             pelo combate, naquele dia 5 de Julho de 1833. Saiu de Lagos, no dia 2 de Julho, com intenção de demandar Lisboa, e avis-
             tou os navios inimigos no dia seguinte. À partida a sua posição era favorável, mas ele queria chegar à abordagem e ao apri-
             sionamento dos navios, para que o poder naval absolutista ficasse destruído. E para isso precisava de mar chão, vento não
             muito forte e – claro – possibilidade de uma aproximação por barlavento com vantagem táctica.
               No quadro podemos ver, ao centro e em primeiro plano, a fragata “Rainha de Portugal” (46 peças), comandada pelo
             próprio Napier, depois da abordagem à nau “Rainha de Portugal” (com o pendão branco de D. Miguel) – um navio muito
             maior e com duas baterias (76 peças). Depois, passando-lhes pela popa (com o pendão azul e branco de D. Maria), está a
             fragata D. Pedro (48 peças), manobrando para a abordagem por sotavento. À proa, e um pouco mais arribado, está a nau
             “D. João VI”, navio chefe dos absolutistas, e à popa a fragata “Martim de Freitas”, desarvorada do mastaréu do velacho. Foi o
             momento crucial da batalha quando Napier conseguiu abordar a “Rainha de Portugal”, sem que a “D. João VI” lhe pudesse
             valer com artilharia ou pessoal, e mantendo, igualmente, fora de acção todos os navios que estavam a sotavento (que se
             vêem ao fundo). Só a “Martim de Freitas” poderia combater, mas, acossada pelos “Portuense”, “Vila Flor” e “Faro” – que se
             vislumbram à esquerda do quadro – preferiu orçar e fugir (o que não conseguiu).
               Esta obra de Morel-Fatio está presente no Museu de Marinha, e merece a nossa atenção, não só pelo rigor histórico, como
             pela qualidade artística e pela forma como nos sugere a movimentação e manobra dos navios durante a Batalha Naval do
             Cabo de S. Vicente.



               Nota: Os quadros de Antoine Léon Morel-Fatio estão assinados com   ou                sendo a pri-
             meira a que consta no “Quadro da Batalha Naval do Cabo de S. Vicente”.


                                                                                  Museu de Marinha
                                                                                  (Texto de J. Semedo Matos, CFR FZ)
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