Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (18)
A espada…
A espada…
ais vezes do que gostaria de recor- vez disso, continuo na direcção contrária, cimento, temporário, na bebida ou em
dar, me senti perdido na vida. Em num caminho sem retorno... qualquer outra forma, física, de atenuar o
Mverdade, penso frequentemente Nos recônditos dessa estrada, solitária, medo e a desgraça que sentem na vida...
que o rumo dos acontecimentos me foge, tenho encontrado muitos como eu, às apal- É neste último grupo, que se encontrava
numa montanha russa, vertiginosa, daque- padelas...Nessa busca, em que cada um se o Perdigão, um jovem marinheiro que
las em que tentamos perceber, onde está o acha involuntariamente, existem muitas havia sido apanhado no rastreio de estupe-
céu, confusos pelo sobe e desce das formas de tentar fazer sentido do incom- facientes. Triste, arrastando uma mágoa
emoções. preensível e de suportar a ansiedade da profunda no olhar, acabou a chorar na
Confrontado com outros, sempre procura. Para alguns é Deus (com o qual enfermaria, a caminho dos Açores, numa
seguros, desejaria ter assim certezas abso- eu estarei para sempre, furiosamente, zan- noite escura como breu...Há na noite, sei-o
lutas, verdades insofismáveis, caminhos gado), outros, os que podem, procuram um há muito, uma intimidade que não se
rectos a percorrer. Em vez disso encontro- sentido na moda, no último modelo de encontra no dia. Talvez porque cada
-me, muitas vezes, a caminhar por uma carro, no último escândalo publicado, ou- homem se sinta mais pequeno, quebrado
estrada vazia e solitária, achando que de- tros ainda, porventura para aqueles para pelo escuro? Talvez porque na noite não
veria ter voltado à esquerda, algures e, em quem o sofrimento é maior, acham esque- há tempo, nem pressa? Talvez, finalmente,
porque cada homem se sinta perseguido
pelos seus próprios fantasmas e, como tal,
aprecie mais a companhia de outros? Não
sei. Lembro apenas que, nessa noite, senti
uma grande amizade pelo Perdigão e pela
história da sua vida.
O Perdigão era o filho mais novo de
uma dessas grandes famílias, que na
busca de uma vida melhor, migrara da
Beira. Ele próprio tinha vivido, pratica-
mente toda a sua vida, num bairro peri-
férico da cidade de Lisboa, numa daque-
las casas clandestinas, em que uma divi-
são serve para cinco irmãos. Tinha ido à
escola, mas via nesta apenas um tempo
de prisão, de afastamento às ruas que tão
bem conhecia... Fez pouco mais que a
escolaridade mínima.
A sua infância e adolescência foram,
assim, passadas nas ruas, em brincadeiras e
aventuras mais ou menos arriscadas, das
quais lembrava as mais loucas como mon-
tar os pára-choques dos autocarros e pedir
cigarros aos homens da rua, correndo atrás
de um tempo que parecia não ter fim...
Um dia, ofereceram-lhe um charro. A
tontura soube-lhe bem. Esqueceu, por
momentos, a solidão que o afligia, a mãe
que já havia falecido precocemente “de
uma grande canseira” e a raiva que nutria
pela vida – onde só aos outros pareciam
acontecer coisas boas...
Veio para a Marinha – “para orientar a
vida” – mas mantinha a solidão. Manteve
também o vício do charro. Parecia-lhe já,
por vezes, ser a única coisa importante no
mundo, fornecendo-lhe paz e segurança.
Ocasionalmente já snifara. Injecções ainda
não fazia – eram caras e ele tinha medo
das picadas e da SIDA.
Tinha sido finalmente apanhado. E nessa
noite teve que parar para pensar e enfrentar
a sua existência...
30 ABRIL 2002 • REVISTA DA ARMADA