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HISTÓRIAS DA BOTICA (18)



                               A espada…
                                A espada…







                ais vezes do que gostaria de recor-  vez disso, continuo na direcção contrária,  cimento, temporário, na bebida ou em
                dar, me senti perdido na vida. Em  num caminho sem retorno...  qualquer outra forma, física, de atenuar o
         Mverdade, penso frequentemente       Nos recônditos dessa estrada, solitária,  medo e a desgraça que sentem na vida...
         que o rumo dos acontecimentos me foge,  tenho encontrado muitos como eu, às apal-  É neste último grupo, que se encontrava
         numa montanha russa, vertiginosa, daque-  padelas...Nessa busca, em que cada um se  o Perdigão, um jovem marinheiro que
         las em que tentamos perceber, onde está o  acha involuntariamente, existem muitas  havia sido apanhado no rastreio de estupe-
         céu, confusos pelo sobe e desce das  formas de tentar fazer sentido do incom-  facientes. Triste, arrastando uma mágoa
         emoções.                           preensível e de suportar a ansiedade da  profunda no olhar, acabou a chorar na
           Confrontado com outros, sempre   procura. Para alguns é Deus (com o qual  enfermaria, a caminho dos Açores, numa
         seguros, desejaria ter assim certezas abso-  eu estarei para sempre, furiosamente, zan-  noite escura como breu...Há na noite, sei-o
         lutas, verdades insofismáveis, caminhos  gado), outros, os que podem, procuram um  há muito, uma intimidade que não se
         rectos a percorrer. Em vez disso encontro-  sentido na moda, no último modelo de  encontra no dia. Talvez porque cada
         -me, muitas vezes, a caminhar por uma  carro, no último escândalo publicado, ou-  homem se sinta mais pequeno, quebrado
         estrada vazia e solitária, achando que de-  tros ainda, porventura para aqueles para  pelo escuro? Talvez porque na noite não
         veria ter voltado à esquerda, algures e, em  quem o sofrimento é maior, acham esque-  há tempo, nem pressa? Talvez, finalmente,
                                                                               porque cada homem se sinta perseguido
                                                                               pelos seus próprios fantasmas e, como tal,
                                                                               aprecie mais a companhia de outros? Não
                                                                               sei. Lembro apenas que, nessa noite, senti
                                                                               uma grande amizade pelo Perdigão e pela
                                                                               história da sua vida.
                                                                                 O Perdigão era o filho mais novo de
                                                                               uma dessas grandes famílias, que na
                                                                               busca de uma vida melhor, migrara da
                                                                               Beira. Ele próprio tinha vivido, pratica-
                                                                               mente toda a sua vida, num bairro peri-
                                                                               férico da cidade de Lisboa, numa daque-
                                                                               las casas clandestinas, em que uma divi-
                                                                               são serve para cinco irmãos. Tinha ido à
                                                                               escola, mas via nesta apenas um tempo
                                                                               de prisão, de afastamento às ruas que tão
                                                                               bem conhecia... Fez pouco mais que a
                                                                               escolaridade mínima.
                                                                                 A sua infância e adolescência foram,
                                                                               assim, passadas nas ruas, em brincadeiras e
                                                                               aventuras mais ou menos arriscadas, das
                                                                               quais lembrava as mais loucas como mon-
                                                                               tar os pára-choques dos autocarros e pedir
                                                                               cigarros aos homens da rua, correndo atrás
                                                                               de um tempo que parecia não ter fim...
                                                                                 Um dia, ofereceram-lhe um charro. A
                                                                               tontura soube-lhe bem. Esqueceu, por
                                                                               momentos, a solidão que o afligia, a mãe
                                                                               que já havia falecido precocemente “de
                                                                               uma grande canseira” e a raiva que nutria
                                                                               pela vida – onde só aos outros pareciam
                                                                               acontecer coisas boas...
                                                                                 Veio para a Marinha – “para orientar a
                                                                               vida” – mas mantinha a solidão. Manteve
                                                                               também o vício do charro. Parecia-lhe já,
                                                                               por vezes, ser a única coisa importante no
                                                                               mundo, fornecendo-lhe paz e segurança.
                                                                               Ocasionalmente já snifara. Injecções ainda
                                                                               não fazia – eram caras e ele tinha medo
                                                                               das picadas e da SIDA.
                                                                                 Tinha sido finalmente apanhado. E nessa
                                                                               noite teve que parar para pensar e enfrentar
                                                                               a sua existência...

         30 ABRIL 2002 • REVISTA DA ARMADA
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