Page 145 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
Património Cultural da Marinha
Peças para Recordar
37. O LEGADO DO VICE-ALMIRANTE TEIXEIRA DA MOTA
Numa tarde de Inverno de 1983, no mês de Fevereiro, uma Quarta-feira dia nove, realizava-se na Biblioteca Central da
Marinha mais uma cerimónia protocolar. Não era uma cerimónia qualquer. Tratava-se de uma cerimónia revestida de apreciável
significado para o Património Cultural da Marinha. O aparato solene, nessa tarde chuvosa, tomava corpo e forma nas personalida-
des presentes. De um lado estavam os mais altos dignatários da Marinha de Guerra Portuguesa: o seu chefe de Estado- Maior, o
Almirante Sousa Leitão; o Vice–chefe, Vice-Almirante Bustorff Guerra; o Superintendente dos Serviços do Pessoal da Armada,
Vice–Almirante Gabor Patkoczy; o Comandante da Escola Naval; o Presidente da Academia de Marinha; o Director do Museu de
Marinha, e o Director da Biblioteca Central da Marinha. Do outro lado os convidados: o Chefe da Casa Militar do Presidente da
República, o Embaixador do Brasil, Dr. Dário Castro Alves, o Director do Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga,
Professor Doutor Luís de Albuquerque, entre outras personalidades conceituadas da sociedade portuguesa e alguns jornalistas que
faziam a cobertura do acontecimento.
Rodeadas de fotógrafos, sentadas no Gabinete do Director da Biblioteca, encontravam-se duas senhoras. Uma de meia idade e
outra de cabelo grisalho, magra, com a face rogada, acusando já o peso da sua provecta idade. Eram nestas senhoras que os
olhares pousavam, que as atenções se concentravam, não fossem elas familiares do Vice-Almirante Teixeira da Mota, distintíssimo
oficial da Marinha, que cerca de um ano antes falecera precocemente, com a idade de 61 anos. Agora, ali, na Biblioteca Central da
Marinha, a senhora mais velha, D. Isaura de Jesus Teixeira, mãe do malogrado Almirante, estendia para o Chefe de Estado- Maior
da Armada, com emoção, as suas mãos trémulas, erguendo um exemplar de «Mar, Além – Mar», uma das obras mais significativas
do seu filho, que naquele momento selava, com a devida pompa e circunstância, um dos seus últimos desejos - a doação da sua
biblioteca à Marinha, para que outros investigadores pudessem fruir dos tesouros que, aos poucos, concentrara nas estantes da sua
casa. Diz quem viu, que o rés-do-chão da sua residência, a famosa casa do Restelo, era praticamente todo ocupado com as pra-
teleiras das estantes, contendo milhares de livros, que fora comprando sempre que surgia oportunidade para o efeito. Ainda jovem,
acalentara o sonho de construir uma imensa base bibliográfica, ao dar conta do exíguo apetrechamento das bibliotecas públicas.
Dotado de um sentido de organização invulgar, o célebre historiador sabia onde encontrar, no seio do imenso amontoado de
exemplares, os livros e os documentos de que necessitava para os seus estudos. A sua biblioteca constituía, pois, o apoio indis-
pensável às matérias que tratava, estudava e investigava com denodo.
O espólio doado à Marinha, em Fevereiro de 1983, reunia um apreciável tesouro composto por cerca de 15 mil volumes, per-
fazendo um total de 6 mil títulos, para além de alguns milhares de papéis avulsos e correspondência particular.
A Biblioteca Central da Marinha viu o seu acervo enriquecido com este imponente fundo bibliográfico. O legado do Vice-
-Almirante Teixeira da Mota passou a constituir, assim, uma das majestosas «peças» patrimoniais que a Marinha se orgulha de
possuir e ter à sua guarda. Este legado, rico e diversificado, compõe-se de importantes fundos sobre História da Cartografia,
História dos Descobrimentos Portugueses, Geografia, Defesa Nacional, História do Ultramar, Legislação e Administração
Ultramarina; dispondo ainda de uma vasta área reservada à História das Civilizações Africanas, à Antropologia e à Etnografia.
Todos estes volumes ocupam seis longas estantes, diferenciando-se da restante massa bibliográfica da Biblioteca Central, osten-
tam uma cota própria com as letras iniciais “TM” e um “Ex-libris”, desenhado pelo Comandante Sousa Machado, contendo um
conjunto de rosas dos ventos e de linhas de rumo, seguindo as iluminuras das cartas náuticas portuguesas do século XVI.
É de referir que entre o espólio encontram-se diversos documentos sobre o Inquérito Etnográfico da Guiné (1946), dados avul-
sos sobre as populações daquele território, documentação relativa ao Conselho Ultramarino e ao Ministério da Defesa Nacional,
apontamentos das várias disciplinas que cursou pela sua vida, juntamente com desenhos e notas da actividade de escuteiro.
Neste legado riquíssimo e único, é possível folhear o manuscrito da “Memória” de Guarda-Marinha, com um elogioso prefácio
de Gago Coutinho, que apresentou para a sua promoção a Segundo-Tenente; e o original “Guiné Portuguesa”, escrito no início
da década de 1950, em dois grossos volumes, com mapas e gravuras, rascunhos diversos, que é um estudo de referência daquela
província ultramarina. Pode ainda ser consultada a totalidade da sua obra, composta de centenas de opúsculos, separatas, artigos
divulgados em revistas conceituadas (Boletim da Guiné Portuguesa, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Boletim da
Academia de Ciências, Imago Mundi, Anais do Clube Militar Naval), ou livros como o «Inquérito Etnográfico»(1947), «A
habitação indígena na Guiné Portuguesa»(1948), «Cartogarfia da África Central e a travessia entre Angola e
Moçambique(1500-1800)»(1964), e trabalhos monumentais como a «Portugaliae Monumenta Cartographica»(1960) e o
«Tabularum Geographiarum Lusitanorum»(1960).
São inúmeras as obras – muitas em primeira edição e preciosas pela sua raridade no país – que espelham a grandiosidade da
herança deixada por Avelino Teixeira da Mota.
A Biblioteca Central da Marinha, através deste legado reforçou, por um lado, o património já existente, em algumas áreas
como a História dos Descobrimentos ou a Cartografia, e, por outro, abriu novos ficheiros, com novos temas e novas matérias,
podendo oferecer assim uma maior gama de bibliografias com interesse irrecusável para a investigação histórica, sociológica ou
antropológica.
Biblioteca Central da Marinha
(Texto de Carlos Manuel Valentim, S/Tenente)