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HISTÓRIAS DA BOTICA (19)



                                       A inveja
                                       A inveja







               Não invejo quem tem carros,
                   parelhas e montes

               Só invejo quem bebe a água
                   em todas as fontes
              inveja, todos o sabem, é um mau sen-
              timento. Leva o ser humano ao pior
         Ade si próprio. É arrogante e egoísta.
         Dessa não vou falar, pois estou cansado de
         histórias tristes. Venho falar-vos de uma outra
         inveja - longe deste pecado mortal – da qual,
         essa sim, muitas vezes padeci...
           De todas as formas de arte, aquela que me
         agrada mais é a música. Gosto da música
         séria e da música leve. Da música clássica e
         da música rock. Da música inglesa, francesa,
         brasileira ou portuguesa. Gosto da música
         sempre que tem alma e corpo. Sempre que
         nos trás sentimentos, memórias, luga-
         res...Acho, hoje, que se pudesse escolher
         teria sido músico.
           Muitas vezes quando a solidão e a per-
         plexidade recorrente me afligem, procuro
         uma canção. E então, livre, navego os sons,
         ouço aquela pequena nota que transporta o
         coração, que nos liberta a alma...
           Ora, em determinado navio, havia um ma-
         rinheiro com um dom muito especial...
           Tratava-se de um homem de corpo farto e
         olhos claros, de um azul que só tem igual no
         céu, no auge de um Verão quente, do
         Monte alentejano que o viu crescer.
         Brindava-nos com a sua voz cheia, grave e
         sóbria, única...em cantares populares.
         Arrastava muitos consigo e fazia-o com arte,
         com sentir, com seriedade, que um sotaque
         genuíno não comprometia. Transportava na
         voz e no sentir, julguei mesmo sem o conhe-
         cer, tudo o que o nosso povo tem de
         bom...toda a limpeza, toda a seriedade, todo  voz de cana rachada, mas senti uma irman-  pormenores, não soube da data da inter-
         o trabalho...E tornava pequena a saudade,  dade e uma comunhão que desconhecia...   venção. Até que, surpreendentemente, numa
         que todos sentíamos, nesse mar distante...  Foi nesse dia, do outro lado do mundo,  das rondas pelas enfermarias do Hospital, era
           Em noites consecutivas, nem o frio metal  que me ocorreu que muitos dos outros mari-  já noite alta, reconheci a voz...Lá cantava o
         do navio, nem o ruído amorfo da máquina,  nheiros, antigos, que por ali navegaram,  marinheiro no mesmo tom, com a mesma
         me impediram de sentir, na sua voz, o sabor  durante séculos, também deveriam ter ecoa-  beleza, imaginei que para espantar a dor da
         doce da terra seca, o calor do fim da tarde e o  do as mesmas canções...com o sentir profun-  recente operação.....Conversámos, demo-
         cantar do melro...no lonjura do pomar....Dias  do, que marca a nossa cultura.  radamente, e perante o meu espanto por o
         a fio, era um cantar agradável, quase irreal,  Mas a minha relação com o melodioso  ouvir cantar naquela situação, ripostou:
         que ecoava contra as anteparas e preenchia o  marinheiro mal tinha começado. Quando  - Sabe Doutor, eu até já cantei num funeral
         vazio dos corredores...            procurou os meus serviços, já eu lhe conhe-  – e com um sorriso malandro, que escondia
           Por vezes formava-se um estranho coro  cia, bem, a voz. Tinha sofrido um acidente -  o sofrimento, concluiu – e o morto gostou!
         espontâneo em que mesmo os que conhe-  mazela antiga. Havia sido operado a uma  Intimamente achei bem. Achei que o
         ciam mal a letra, ou tinham provado um  perna. A perna não tinha ficado bem.  morto deveria ir muito mais feliz por uma
         pouco mais de cerveja, não desafinavam,  Inchava muito e dificultava o seu trabalho,  missa rezada por um cardeal assim, sem can-
         numa sucessão de belas melodias... Um dia,  quase sempre em pé.       delabros, sem velas, sem ladaínhas, sem
         nesse doce embalo, também eu me enchi de  Regressados, lá se agendou uma operação,  promessas, só com força e alegria... E foi
         coragem e cantei...Não sabia a letra e tenho  para consertar o que estava mal. Perdido dos  então que tive inveja, muita inveja de não ter

         30 MAIO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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