Page 176 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (19)
A inveja
A inveja
Não invejo quem tem carros,
parelhas e montes
Só invejo quem bebe a água
em todas as fontes
inveja, todos o sabem, é um mau sen-
timento. Leva o ser humano ao pior
Ade si próprio. É arrogante e egoísta.
Dessa não vou falar, pois estou cansado de
histórias tristes. Venho falar-vos de uma outra
inveja - longe deste pecado mortal – da qual,
essa sim, muitas vezes padeci...
De todas as formas de arte, aquela que me
agrada mais é a música. Gosto da música
séria e da música leve. Da música clássica e
da música rock. Da música inglesa, francesa,
brasileira ou portuguesa. Gosto da música
sempre que tem alma e corpo. Sempre que
nos trás sentimentos, memórias, luga-
res...Acho, hoje, que se pudesse escolher
teria sido músico.
Muitas vezes quando a solidão e a per-
plexidade recorrente me afligem, procuro
uma canção. E então, livre, navego os sons,
ouço aquela pequena nota que transporta o
coração, que nos liberta a alma...
Ora, em determinado navio, havia um ma-
rinheiro com um dom muito especial...
Tratava-se de um homem de corpo farto e
olhos claros, de um azul que só tem igual no
céu, no auge de um Verão quente, do
Monte alentejano que o viu crescer.
Brindava-nos com a sua voz cheia, grave e
sóbria, única...em cantares populares.
Arrastava muitos consigo e fazia-o com arte,
com sentir, com seriedade, que um sotaque
genuíno não comprometia. Transportava na
voz e no sentir, julguei mesmo sem o conhe-
cer, tudo o que o nosso povo tem de
bom...toda a limpeza, toda a seriedade, todo voz de cana rachada, mas senti uma irman- pormenores, não soube da data da inter-
o trabalho...E tornava pequena a saudade, dade e uma comunhão que desconhecia... venção. Até que, surpreendentemente, numa
que todos sentíamos, nesse mar distante... Foi nesse dia, do outro lado do mundo, das rondas pelas enfermarias do Hospital, era
Em noites consecutivas, nem o frio metal que me ocorreu que muitos dos outros mari- já noite alta, reconheci a voz...Lá cantava o
do navio, nem o ruído amorfo da máquina, nheiros, antigos, que por ali navegaram, marinheiro no mesmo tom, com a mesma
me impediram de sentir, na sua voz, o sabor durante séculos, também deveriam ter ecoa- beleza, imaginei que para espantar a dor da
doce da terra seca, o calor do fim da tarde e o do as mesmas canções...com o sentir profun- recente operação.....Conversámos, demo-
cantar do melro...no lonjura do pomar....Dias do, que marca a nossa cultura. radamente, e perante o meu espanto por o
a fio, era um cantar agradável, quase irreal, Mas a minha relação com o melodioso ouvir cantar naquela situação, ripostou:
que ecoava contra as anteparas e preenchia o marinheiro mal tinha começado. Quando - Sabe Doutor, eu até já cantei num funeral
vazio dos corredores... procurou os meus serviços, já eu lhe conhe- – e com um sorriso malandro, que escondia
Por vezes formava-se um estranho coro cia, bem, a voz. Tinha sofrido um acidente - o sofrimento, concluiu – e o morto gostou!
espontâneo em que mesmo os que conhe- mazela antiga. Havia sido operado a uma Intimamente achei bem. Achei que o
ciam mal a letra, ou tinham provado um perna. A perna não tinha ficado bem. morto deveria ir muito mais feliz por uma
pouco mais de cerveja, não desafinavam, Inchava muito e dificultava o seu trabalho, missa rezada por um cardeal assim, sem can-
numa sucessão de belas melodias... Um dia, quase sempre em pé. delabros, sem velas, sem ladaínhas, sem
nesse doce embalo, também eu me enchi de Regressados, lá se agendou uma operação, promessas, só com força e alegria... E foi
coragem e cantei...Não sabia a letra e tenho para consertar o que estava mal. Perdido dos então que tive inveja, muita inveja de não ter
30 MAIO 2002 • REVISTA DA ARMADA