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HISTÓRIAS DA BOTICA (24)



         Os privilegiados...militares...
         Os privilegiados...militares...




              á, infelizmente, na sociedade civil um  atingem o limiar anedótico...  enfim, colocar-se em consonância com os
              desprestígio crescente da comu-  Ora, há bem pouco tempo, fiquei perturba-  procedimentos deste tempo. Actualmente,
        Hnidade militar. Ouve-se e sente-se,  do com um oficial na reforma que pedia  não faz mal prevaricar, sobretudo no que diz
         frequentemente, a crítica mais ou menos  receitas para a mulher, acamada por doença  respeito a dinheiro, o importante é não ser
         velada, consubstanciada no refrão comum,  grave, incurável:           apanhado. Os cumpridores são uns asnos.
         ignorante: “afinal para que servem os mi-  - Doutor, dizia, peço-lhe que me passe  Pois cabe lá na cabeça de alguém pagar
         litares.?” Como saberá o leitor, nem sempre  estes medicamentos para a minha mulher.  impostos por tudo o que se ganha, ou não
         estas afirmações provêm de infelizes incultu-  Sabendo que há abusos, perguntei-lhe porque  pedir uma comissãozita...Seria, ouso dizer
         rados, mas, com frequência, de Doutores e  não os pedia simplesmente ao médico dela?  mesmo, imoral não fazer assim...
         Engenheiros, de referência no nosso pequeno  - É que de cada vez que o médico vai lá a  É que este caso me deixou azedo. É um
         país. Outras vezes, são mesmo jornalistas mal  casa é caro – retorquiu ele - e eu não tenho  azedume sentido contra o faz de conta, em
         informados, ou quiçá mal intencionados, a  dinheiro para tanto...     que, acredito, se tornou o nosso país.
         dar o mote, na crítica desajustada, para não  Passei os medicamentos e meditei sobre o  Fazemos de conta que o sistema tributário é
         dizer claramente falsa...          assunto. Lembrei-me a esse propósito do  justo, enquanto uns parvos forem forçados a
           Sendo eu um militar sem grande gabarito,  comentário de um oficial e bom amigo:  pagar muito sobre o pouco que ganham, para
         já que fiz toda a minha formação fora da  - Vivemos numa miséria dourada e só os  que a riqueza de outros, espertos, aumente
         Marinha, como é apanágio dos médicos,  galões conservam algum brilho, mas sabem a  exponencialmente. Fazemos de conta que a
         sinto, contudo, com particular acuidade tais  pouco...                Saúde funciona, quanto todos sabemos que é
         críticas, talvez porque fui conhecendo o ínti-  Ali estava a materialização desta frase. A  má e é tudo menos universal. Fazemos de
         mo da Instituição, com todas as dificuldades  compensação que tal privilegiado militar  conta que somos iguais aos outros europeus,
         profissionais e pessoais, que a vivência cas-  tinha, pelos anos de entrega nas fileiras,  quando na verdade cada vez produzimos
         trense acarreta.                   resumia-se à capacidade de mendigar umas  menos e nos tornámos especialistas em plan-
           Na verdade, grassa uma ignorância gene-  tantas receitas. Acredito, hoje, que quem  tar supermercados, hipermercados e centros
         ralizada sobre a vida militar, particularmente  manda deve saber que assim é. Vivemos,  comerciais, onde vamos comprar o que ou-
         sobre a vida naval. Ninguém reconhece as  infelizmente, numa época em que defender  tros produzem, com crédito por eles forneci-
         dificuldades do enjoo, da distância, da falta  militares é politicamente incorrecto. Em que  do. Fazemos de conta, finalmente, que temos
         de privacidade, da saudade....Também não se  ninguém sabe, nem parece querer saber, o  Forças Armadas, quando todos sabemos que
         reconhece a parte importante de si que cada  que significa ser cidadão e os sacrifícios que  se fazem milagres todos os dias, para manter
         militar concede ao país, inerente à própria  outros têm de fazer para que o país seja  missões em que material e pessoal são força-
         condição militar - a capacidade para dizer  respeitado...             dos aos limites...
         não - concedida com alarido e pompa a todas  Apeteceu-me então dizer a esse homem,  Dizer mal dos militares é, pois, um negócio
         as outras classes desta nossa sociedade. Ao  “olhe, arranje um negóciozito...”, talvez  popular. Talvez coubesse aos militares
         contrário, atribuem-se aos militares míticas  numa Câmara Municipal, no futebol, talvez  explicar melhor qual a sua função, ou talvez o
         regalias e avultados vencimentos, do tipo  inspector de alguma coisa também tenha  sistema educativo ou de valores esteja absolu-
         combustível a baixo preço, redução de  futuro... Assim podia proceder como é cor-  tamente errado. Não sei, mas impressiona-me
         impostos e outras, tão desajustadas, que  rente - receber umas moeditas por fora,  o fervor com que, em certos países do mundo


































         30 NOVEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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