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Uma Luz no Fundo do...Dique
          Uma Luz no Fundo do...Dique




               ão é a primeira vez que tal me  - Olha: depois o dique funcionou até  o levar a ver o dique e perguntar-lhe: É
               acontece(1). É sempre ao pôr do  1807, esse ano em que a Família Real  capaz de pôr isto a funcionar? O holandês
        N Sol. Estou no parque de estacio-  abalou para o Brasil. Então, começou o  disse que sim. Contrataram-no. Mas levou
         namento da Marinha e oiço uma voz  descalabro. Posso contar? Não te vais  5 anos a pôr o dique a funcionar. Mais
         sumida:                            envergonhar, como oficial de Marinha?  tempo que eu levei a construí-lo, apesar
           - Não me ouves?                    - Não tenho outro remédio. Ataca! Para  do solo, nesta zona da cidade, merecer
           - Sim, sim, estou a ouvir, mas quem és tu?  mais a tua arma é a artilharia.(3)  sérios cuidados.
           Olho à minha volta e não vejo ninguém.  - Pois bem, a partir daquela data, o  -Não acredito, respondi. Porquê essa
         Apenas oiço uma voz sumida, uma voz  dique deixou de receber navios. E sabes  demora?
         que vai crescendo de tom:          porquê? Nem vais acreditar. Só por isto:  - Julgo que Pierterszon era um enge-
           - Sou o Bartolomeu da Costa(2), bri-  as grandes portas de madeira avariaram, o  nheiro competente. Todavia, parece que
         gadeiro e cons-                                                                           não se entendia
         trutor deste di-                                                                          com o Arsenal e
         que que vocês                                                                             o Arsenal, por
         estão a esven-                                                                            seu lado, não
         trar. Para quê?                                                                           conseguia ver-
         Posso saber?                                                                              bas para adqui-
           - Falas num                                                                             rir a madeira. Só
         tom que até pa-                                                                           em 1850, a obra
         rece que não                                                                              ficou terminada
         estás contente?                                                                           e o dique reco-
         Estamos a dar                                                                             meçou a rece-
         um arranjo a este                                                                         ber navios.
         parque, e foi                                                                               - Até que en-
         decidido mostrar                                                                          fim, disse eu.
         a tua grande                                                                              Custou, mas foi.
         obra.                                                                                       -  Mas não
           - Mostrar a                                                                             completamente.
         minha grande                                                                              Havia outros
         obra?  Estás a                                                                            problemas. O
         brincar comigo.                                                                           dique era posto
         Não deve passar                                                                           em seco usando
         de mais uma                                                                               bombas de es-
         tropelia que es-                                                                          goto que eram
         tão a fazer à                                                                             movidas pela
         maior realização da minha vida. E a  dique não podia fechar-se ficando atulha-  força braçal. Instalou-se  uma bomba
         propósito, sabes, por ventura, como  do de lodo. Fizeram-se várias tentativas  movida a vapor, mas tinha fraco ren-
         nasceu este pobre dique?           para o reparar. Técnicos portugueses e  dimento. Teve de ser substituída em 1865
           - Tu já em tempos me contaste...,  estrangeiros ofereceram-se ou foram  por outra mais potente. As portas de
         repliquei timidamente.             encarregados desse trabalho. Alguns deles  madeira eram frágeis e pouco eficientes.
           - Talvez. Mas não se perde nada em  nem sequer mostraram o que eram  Aliás, já não se usavam nas docas secas de
         repetir. Aí vai. Tudo começou por ordem  capazes de fazer. O dique continuava  outros países. Em  1868 foram substituídas
         desse grande ministro da Marinha que foi  inoperativo, porque a principal dificul-  por uma porta-batel. Mas o  dique só ga-
         Martinho de Melo e Castro. Em 1788 foi  dade residia na construção de novas por-  nhou o seu estatuto operacional, quando
         posta a primeira pedra e quatro anos  tas que exigiam pranchas de madeira de  se montaram novas portas de ferro, o que
         depois já entravam navios no dique. E  grandes dimensões que só se conseguiam  permitiu alternar a sua utilização com a
         sabes que fui eu quem pagou a obra?  na Rússia, nas florestas de Riga. Eu já não  porta-batel e, assim, efectuar a indis-
           - Não te sabia tão endinheirado.  podia fazer nada porque em 1800 deixei  pensável manutenção do sistema de aber-
           - Na realidade, não tinha dinheiro mas  o mundo dos vivos e nesta minha situa-  tura e fecho da doca. Só nos anos 70 o
         criei-o. Foi assim: as fábricas de pólvora  ção...ninguém me ouve. A não seres tu,  dique passou a ser usado sem interrupção
         de Barcarena e Alcântara, iam de mal a  bem entendido. E, por isso, o dique esteve  até 1939.
         pior. Tomei conta delas. Modernizei-as,  parado até meados do século. Mais de 40  - E depois?
         introduzi novos processos de laboração,  anos de inactividade! Mais de 40 anos em  - Depois, foi o fim. Inventaram uma
         alguns da minha autoria. Tomei medidas  que os navios mercantes e de guerra tive-  avenida marginal e o dique foi condenado
         de segurança, em que muitos não acredi-  ram de encalhar na praia ou virar de care-  a ser atulhado.
         tavam. E o resultado foi chegar a ter  na para tratar as suas obras vivas. Isto  -Tudo tem um fim, afirmei. O Arsenal
         lucros de mais de 100 contos anuais,  porque não havia outra doca seca no  passou para o Alfeite e aí foram usados
         vendendo a pólvora a portugueses e o  país.                           novos sistemas de docagem. É o progresso.
         estrangeiros. Na época era muito di-  - Mas isso é incompreensível, lamentei  Acho que o dique cumpriu o seu dever.
         nheiro. E foi com parte deste lucro que se  eu.                       Por isso...
         construiu o dique.                   -Pois é. Até que um dia um tal     - Estás enganado. O dique é uma obra
           - Agora percebo. Foi uma bela medida. E  Pieterszon, engenheiro holandês, passou  de arte e tem de ser encarada como tal.
         depois?                            por Lisboa. Alguém teve a ideia genial de  A Marinha tem de proteger o seu

         26 NOVEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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