Page 352 - Revista da Armada
P. 352
Uma Luz no Fundo do...Dique
Uma Luz no Fundo do...Dique
ão é a primeira vez que tal me - Olha: depois o dique funcionou até o levar a ver o dique e perguntar-lhe: É
acontece(1). É sempre ao pôr do 1807, esse ano em que a Família Real capaz de pôr isto a funcionar? O holandês
N Sol. Estou no parque de estacio- abalou para o Brasil. Então, começou o disse que sim. Contrataram-no. Mas levou
namento da Marinha e oiço uma voz descalabro. Posso contar? Não te vais 5 anos a pôr o dique a funcionar. Mais
sumida: envergonhar, como oficial de Marinha? tempo que eu levei a construí-lo, apesar
- Não me ouves? - Não tenho outro remédio. Ataca! Para do solo, nesta zona da cidade, merecer
- Sim, sim, estou a ouvir, mas quem és tu? mais a tua arma é a artilharia.(3) sérios cuidados.
Olho à minha volta e não vejo ninguém. - Pois bem, a partir daquela data, o -Não acredito, respondi. Porquê essa
Apenas oiço uma voz sumida, uma voz dique deixou de receber navios. E sabes demora?
que vai crescendo de tom: porquê? Nem vais acreditar. Só por isto: - Julgo que Pierterszon era um enge-
- Sou o Bartolomeu da Costa(2), bri- as grandes portas de madeira avariaram, o nheiro competente. Todavia, parece que
gadeiro e cons- não se entendia
trutor deste di- com o Arsenal e
que que vocês o Arsenal, por
estão a esven- seu lado, não
trar. Para quê? conseguia ver-
Posso saber? bas para adqui-
- Falas num rir a madeira. Só
tom que até pa- em 1850, a obra
rece que não ficou terminada
estás contente? e o dique reco-
Estamos a dar meçou a rece-
um arranjo a este ber navios.
parque, e foi - Até que en-
decidido mostrar fim, disse eu.
a tua grande Custou, mas foi.
obra. - Mas não
- Mostrar a completamente.
minha grande Havia outros
obra? Estás a problemas. O
brincar comigo. dique era posto
Não deve passar em seco usando
de mais uma bombas de es-
tropelia que es- goto que eram
tão a fazer à movidas pela
maior realização da minha vida. E a dique não podia fechar-se ficando atulha- força braçal. Instalou-se uma bomba
propósito, sabes, por ventura, como do de lodo. Fizeram-se várias tentativas movida a vapor, mas tinha fraco ren-
nasceu este pobre dique? para o reparar. Técnicos portugueses e dimento. Teve de ser substituída em 1865
- Tu já em tempos me contaste..., estrangeiros ofereceram-se ou foram por outra mais potente. As portas de
repliquei timidamente. encarregados desse trabalho. Alguns deles madeira eram frágeis e pouco eficientes.
- Talvez. Mas não se perde nada em nem sequer mostraram o que eram Aliás, já não se usavam nas docas secas de
repetir. Aí vai. Tudo começou por ordem capazes de fazer. O dique continuava outros países. Em 1868 foram substituídas
desse grande ministro da Marinha que foi inoperativo, porque a principal dificul- por uma porta-batel. Mas o dique só ga-
Martinho de Melo e Castro. Em 1788 foi dade residia na construção de novas por- nhou o seu estatuto operacional, quando
posta a primeira pedra e quatro anos tas que exigiam pranchas de madeira de se montaram novas portas de ferro, o que
depois já entravam navios no dique. E grandes dimensões que só se conseguiam permitiu alternar a sua utilização com a
sabes que fui eu quem pagou a obra? na Rússia, nas florestas de Riga. Eu já não porta-batel e, assim, efectuar a indis-
- Não te sabia tão endinheirado. podia fazer nada porque em 1800 deixei pensável manutenção do sistema de aber-
- Na realidade, não tinha dinheiro mas o mundo dos vivos e nesta minha situa- tura e fecho da doca. Só nos anos 70 o
criei-o. Foi assim: as fábricas de pólvora ção...ninguém me ouve. A não seres tu, dique passou a ser usado sem interrupção
de Barcarena e Alcântara, iam de mal a bem entendido. E, por isso, o dique esteve até 1939.
pior. Tomei conta delas. Modernizei-as, parado até meados do século. Mais de 40 - E depois?
introduzi novos processos de laboração, anos de inactividade! Mais de 40 anos em - Depois, foi o fim. Inventaram uma
alguns da minha autoria. Tomei medidas que os navios mercantes e de guerra tive- avenida marginal e o dique foi condenado
de segurança, em que muitos não acredi- ram de encalhar na praia ou virar de care- a ser atulhado.
tavam. E o resultado foi chegar a ter na para tratar as suas obras vivas. Isto -Tudo tem um fim, afirmei. O Arsenal
lucros de mais de 100 contos anuais, porque não havia outra doca seca no passou para o Alfeite e aí foram usados
vendendo a pólvora a portugueses e o país. novos sistemas de docagem. É o progresso.
estrangeiros. Na época era muito di- - Mas isso é incompreensível, lamentei Acho que o dique cumpriu o seu dever.
nheiro. E foi com parte deste lucro que se eu. Por isso...
construiu o dique. -Pois é. Até que um dia um tal - Estás enganado. O dique é uma obra
- Agora percebo. Foi uma bela medida. E Pieterszon, engenheiro holandês, passou de arte e tem de ser encarada como tal.
depois? por Lisboa. Alguém teve a ideia genial de A Marinha tem de proteger o seu
26 NOVEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA