Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (29)
Carta a um amigo doente,
Carta a um amigo doente,
ou o valor de uma lágrima…
ou o valor de uma lágrima…
A e o desespero com a esperança, por isso
solidão tem muitas formas. Pode ser – Mas, na verdade, estamos todos a cami-
o simples acto de estarmos sós, mas, nhar para lá. Não desesperes, essa doença continuei…
em geral, refere-se ao local em que tem, em muitos casos, tratamento.
- Tem calma, vou-te apresentar um co-
nos encontramos, perdidos, na multidão Mas este meu amigo, não conseguia, na- nhecido meu que está curado…Mas ele
anónima que caracteriza a vida de muitos. quele momento, ouvir qualquer mensagem chorava e chorava, num pranto sincero,
Noutras vezes, acompanha sofrimentos positiva. Há dias assim – eu também os silencioso…retorquindo:
que nos são impostos, por descriminação, tenho – de certeza todos os temos. Contu- - Doutor, diz-me lá, qual é o valor da
por medo, ou por vergonha. É, contudo, do, a solidão combate-se com a presença vida e de cada uma destas lágrimas? Dizia
um sentimento honesto, que
modifica a vida e nos pode
– acredito profundamente
– moldar de forma positiva
o ser e o sentir.
Ora, como sabe o leitor,
os hospitais são sítios de so-
lidão e, frequentemente, de
desespero. Pouca gente fala
disso, mas muitos o sentem.
Encontrei aí um amigo que
há muito tempo não via. A
princípio, tentou fingir que
tudo estava bem. Como, to-
dos, muitas vezes fazemos.
Mas estava internado – não
havia como disfarça-lo. Ha-
via ainda o cabelo rapado,
a cor lamacenta da anemia
e os olhos sem brilho do
desespero. Foi então que
me contou que tinha uma
doença grave, e já fazia
ciclos de quimioterapia há
cerca de um ano: era um
linfoma – dizia, com a voz
embargada.
Começou então, para meu
embaraço, a chorar:
- Estou encomendado
Doutor – afirmava com dor.
E continuou, no mesmo tom
– Sou ainda novo e dói-me,
dói-me muito, tudo aquilo
que devia ter feito e não fiz,
e tudo o que poderia ainda
fazer com a minha vida…
Não era a primeira vez
que encontrava amigos
em aperto, e, aprendi, que
devemos ouvir quem sofre
e acreditar, quando eles já
não conseguem. Respondi
então:
- Estamos todos encomen-
dados, pá, a única diferença
é que uns pensam que vão
mais cedo – respondi eu
com quase dureza na voz
30 ABRIL 2003 U REVISTA DA ARMADA