Page 145 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
Património Cultural da Marinha
Peças para Recordar
48. A TAPEÇARIA DE TOURNAI DO MUSEU DE MARINHA
Dentro das numerosas e valiosíssimas peças que podem ser apreciadas no nosso Museu de Marinha, merece um espe-
cial relevo uma tapeçaria exposta na Sala dos Descobrimentos, onde está representada uma cena de carga (ou descarga)
de um navio do século XVI. Elaborada em linhagem (linho grosso) e lã, com 3,50m de comprimento e 1,70m de largura,
foi feita na cidade de Tournai, na Flandres, muito provavelmente pelo mestre tapeceiro Arnould Poissonier, no princípio
dos anos vinte do século XVI, com um destino que não é bem conhecido, mas que acabou por trazê-la até ao Museu da
Marinha em Portugal, já no século XX.
A tapeçaria desenvolveu-se de forma extraordinária na fase final da Idade Média e no período Moderno sendo usada
como objecto decorativo que traz conforto às amplas salas de paredes frias, permitindo recriar os espaços, onde as repre-
sentações pictóricas são estruturadas como um discurso harmónico de grande intensidade. Normalmente eram constituídas
por colecções de peças adaptadas a um espaço específico, organizadas como elementos de um diaporama, que se com-
pletaria com a música, a poesia, a representação teatral, ou qualquer outro tipo de vivência artística que faziam de cada
sala um mundo próprio, envolvendo a presença humana, elevando-a a uma dimensão onírica. As tapeçarias da Flandres
foram famosas pela sua qualidade e riqueza, elaboradas em lã, linho ou seda, por vezes enriquecido com fio de ouro, con-
forme as capacidades económicas e os desígnios de quem as encomendava. E, no princípio do século XVI, distinguiram-se
especialmente as da cidade de Tournai, de onde veio aquela que agora pertence ao Museu da Marinha. Faz parte de uma
série temática que teve origem no início do século – por alturas de 1504 – suscitada pelo imaginário associado às viagens
marítimas portuguesas, pelas longínquas paragens pejadas de riquezas, povoadas de seres que se confundem com os mo-
delos das mitologias clássicas, num conjunto que não é outra coisa que a enorme nostalgia do paraíso perdido. Terá sido
o próprio D. Manuel que fez a primeira encomenda de tapeçarias onde estava representada a epopeia de Vasco da Gama
na descoberta do caminho marítimo para a Índia?... É muito provável que sim, apesar de escassearem provas definitivas de
tal acto. A verdade é que um conjunto de documentos, existentes em Tournai, referem uma série de tapeçarias que ficaram
com o nome significativo de à la manière de Portugal e de Indie. A mais antiga destas tapeçarias, e aquela que apresenta
numa só peça todo o conjunto mítico do mundo de D. Manuel, após as primeiras expedições ao Oriente, foi adquirida
em 1957 pelo Banco Nacional Ultramarino e depositada no Museu do Caramulo, em circunstâncias muito semelhantes à
forma como veio para Portugal a que pertence ao Museu de Marinha. Nesta obra podemos apreciar um discurso simbóli-
co com o rei venturoso acompanhado da Sibila que lhe anuncia a glória do seu futuro, um espaço onde são representadas
as viagens que ligaram o Oriente à Europa trazendo as mercadorias mais exóticas (entre as quais um cavalo unicórnio), e,
numa outra parte, a imagem desse mesmo Oriente aportado pelos portugueses. Tudo isto numa mesma peça de dimensões
enormes (4,00m x 7,60m). Estas tapeçarias eram elaboradas a partir de um desenho inicial que servia de matriz (o cartão),
a partir da qual poderiam ser feitas outras peças que englobariam todo o tema numa só obra, ou que poderiam dividir-se
em porções que no seu conjunto transmitiam a mesma mensagem, adaptando-se às condições do espaço a que se desti-
navam. A Tapeçaria de Tournai do Museu de Marinha representa apenas um pequeno segmento da parte central do tema,
com a carga (ou descarga) de um navio. Nota-se nela uma clara evolução do desenho original, que corresponde a uma
evolução da imagem inicial da Índia, tendo desaparecido a figura do cavalo unicórnio, aqui, substituída por simples fardos
de mercadorias e alguns animais de menor porte. O trabalho pode estimar-se como tendo sido efectuado por alturas dos
anos 20 do séc. XVI – pouco antes da morte de Arnould Poissonier, que ocorreu em 1522 – mostrando-nos uma pequena
embarcação colocada entre um grande navio e terra, servindo de transporte das mercadorias de um local para o outro. Três
figuras humanas procedem à estiva do material, sendo curioso notar como uma delas aparece com óculos.
Esta tapeçaria foi comprada em 1912, em conjunto com outras três do mesmo fabricante e época, a um antiquário pari-
siense (Raoul Heilbronner) por John Holmes: um coleccionador inglês que a colocou numa propriedade sua em Formakin,
onde tinha uma sala concebida para expor tapeçarias. Holmes faleceu em 1937, e as tapeçarias foram vendidas a Alfred
Macdonald (antiquário de Glasgow), só voltando a saber-se delas quando Abel Lacerda as descobre perto de Oxford, na
posse de um coleccionador de nome George Kolkhorst a quem as adquiriu. Abel Lacerda procurou trazer para Portugal as
quatro tapeçarias que estavam em Inglaterra (bem como duas outras que encontrou em Nova York na firma leiloeira French
& Company, Inc.), mas, infelizmente, faleceu nesse mesmo ano, num acidente de viação. Apesar disso, foi formada uma
Fundação com o seu nome, que, com a ajuda de vários patrocinadores, conseguiu adquirir as obras que Abel Lacerda não
tinha comprado ainda. Um desses patrocinadores foi a Companhia Colonial de Navegação, que, por influência do Almi-
rante Américo Thomaz (então Ministro da Marinha), adquiriu a tapeçaria que, de imediato, passou para o acervo do Museu
de Marinha. A peça sofreu um rasgão a todo o seu comprimento – provavelmente na sequência de um roubo que ocorreu
quando estava na colecção de Holmes – e foi restaurada, mas o fio usado no restauro está tingido com pigmentação quí-
mica que tem vindo a descolorar com o tempo. Apesar de tudo, é manifesto o seu valor patrimonial e artístico, expresso
pela frequência com que é requisitada para exposições, onde é frequente ser exibida em conjunto com as suas irmãs do
Museu do Caramulo.
Museu de Marinha
(Texto de J. Semedo de Matos, CFR FZ)