Page 150 - Revista da Armada
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PONTO AO MEIO DIA
Soberania,
Direito Internacional e Guerra
partir do momento em que se começou a O problema é que a grande maioria dos Esta- como refere a Agenda para a Paz.
admitir a intervenção militar para derru- dos não alienam parcela alguma da sua soberania Aliás, já noutras circunstâncias a Senhora Made-
A bar o regimen de Saddam Hussein, dois e não aceitam o primado do Direito Internacional leine Albright, quando ainda era Embaixadora dos
temas distintos mas relacionados foram frequen- sobre o seu poder soberano. Estados Unidos na ONU, tinha declarado:
temente discutidos. Todos os Estados, até há meia dúzia de anos, ... a nova política destina-se a assegurar que nos dis-
Por um lado, a apreciação crítica do regimen defendiam com a maior das naturalidades e com pensaremos de solicitar à ONU a realização de missões
em vigor no Iraque e as consequências nacionais, toda a legitimidade a sua soberania que, segundo para as quais não se encontra apetrechada e que ajuda-
internacionais e humanas da acção do Governo o conceito clássico universalmente aceite, é o poder remos a ONU a ser bem sucedida nas missões que gos-
chefiado por Saddam Hussein. Por outro lado, a que não tem igual a nível interno e não tem superior taríamos que cumprissem (5).
apreciação, à luz do Direito Internacional, da pro- a nível externo (1). Referindo-se ao recente debate sobre a crise do
posta de intervenção militar no Iraque apresentada Os Estados Unidos são um dos Estados que não Iraque no Conselho de Segurança, Richard Perle
pelos Estados Unidos. estão dispostos a ceder parcela alguma da sua so- tece considerações bastante pessimistas:
berania. E isso, muito claramente o afirmou Jesse ...será importante ter presente, melhor ainda com-
De forma muito resumida e sem qualquer pre- Helms, Presidente do Comité do Senado para as Re- preender, o naufrágio intelectual do conceito liberal
ocupação com justificações, Saddam Hussein era lações Exteriores, quando escreveu: É verdade que o de segurança através da lei internacional adminis-
considerado um ditador execrável, responsável por Senado dos Estados Unidos ratificou a Carta das Nações trada por instituições internacionais.
crimes contra grupos nacionais vários, pela perse- Unidas há 50 anos. Mas, procedendo assim, a América não ...Não nos devemos resignar com a noção de que a or-
guição violenta de adversários políticos, pelo fabri- cedeu «uma sílaba» da sua soberania às Nações Unidas. dem mundial exige o nosso recuo perante Estados que
co e utilização de armas de destruição maciça, pelo De acordo com o sistema americano, quando os acordos aterrorizam os seus cidadãos e ameaçam os nossos (6).
apoio financeiro ao terrorismo internacional, pela internacionais são ratificados tornam-se, simplesmente,
agressão armada contra dois países vizinhos e pelo lei doméstica dos Estados Unidos. Como tal, eles não têm A União Europeia reúne pouco mais de uma
total desprezo por 17 Resoluções do Conselho de maior ou menor peso do que qualquer outra lei doméstica dúzia de países (entre os 173 existentes) e é a única
Segurança das Nações Unidas. americana. As obrigações dos tratados podem ser suplan- organização internacional onde os seus membros
A respeito desta matéria não será necessário ela- tadas por um simples acto do Congresso (2). estão decididos a ir alienando, lentamente, algu-
borar mais, uma vez que sobre ela havia consenso, mas parcelas de soberania com o fim de conseguir
não muito longe da unanimidade. Na actual crise relacionada com o Iraque, o Presi- pôr em prática objectivos comuns muito concretos.
dente George Bush declarou muito claramente, que Mas são decisões e atitudes muitíssimo recentes e
Face a este comportamento, os Estados Unidos os Estados Unidos haviam de impor a Saddam o de âmbito muito limitado, como a desvalorização
consideraram que a presença de Saddam Hussein respeito pelas Resoluções das Nações Unidas: das fronteiras e aceitação da moeda única, apenas
no poder constituía não só uma inaceitável descon- Mas não se pode duvidar dos propósitos dos Estados no passado ano 2002. Mas, mesmo entre o restrito
sideração às Nações Unidas e à comunidade inter- Unidos. As resoluções do Conselho de Segurança serão número de membros da União Europeia, houve al-
nacional representada nesta Organização (todos os postas em prática... ou a acção será inevitável. E um guns que não estiveram dispostos a ceder atributos
países com excepção de Taiwan), como constituía regime que perdeu a sua legitimidade [o de Saddam das suas soberanias.
também uma grave ameaça à segurança e à paz Hussein] perderá também o poder (3). Contudo, por tudo isto se pode afirmar que a
mundiais. Esta ameaça concretizava-se, fundamen- Por outro lado, os Estados Unidos só desrespei- União Europeia está na vanguarda do processo do
talmente, pelo contínuo rearmamento do Iraque, taram o direito internacional na opinião daqueles desenvolvimento humano.
pelas intenções de Saddam de continuar as agres- que entendem que a Resolução n.º 1441 de No- E será também por isso que a União Europeia tem
sões militares regionais e pelo apoio à rede do ter- vembro de 2002, do Conselho de Segurança, não toda a legitimidade para lutar pelo reconhecimento
rorismo internacional de que os Estados Unidos era suficiente para permitir a intervenção militar universal do primado do Direito Internacional no
foram a mais trágica vítima. Os Estados Unidos sobre o Iraque. julgamento do comportamento dos Estados e na re-
pensam que as ameaças deste tipo não têm defesa Os Estados Unidos não desrespeitaram nenhuma gulamentação de alguns aspectos mais importantes
válida e que é inadmissível assumir uma atitude Resolução, mas o Iraque, só na última década, des- das relações internacionais. Mas é uma luta difícil
reactiva, que subentende ter que esperar por novo respeitou 17. Os Estados Unidos deveriam, segundo porque, insiste-se, aceitar que o Direito Internacional
ataque para então reagir tardiamente, voltando a os que os acusam, aguardar uma resolução que estes se sobrepõe ao poder soberano dos Estados é algo
evocar o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas. não propuseram. Por outro lado, o Secretário-Geral que começou a divulgar-se há um par de anos e que
Por isso, sentem-se obrigados a desenvolver acções da ONU, na Agenda para a Paz, aceite e aplaudida a maioria dos Estados ainda não aceita.
preventivas, numa guerra ao terrorismo que se sabe no Conselho de Segurança e também na Assem- Z
ser difícil e prolongada no tempo. bleia Geral, referindo-se às diversas modalidades António Emílio Ferraz Sacchetti
Sobre esta análise e conclusões apresentadas pelos de acção possíveis para a defesa da paz, incluindo Vice-Almirante
Estados Unidos as opiniões dividiram-se. o “desarmamento” compulsivo, diz: Notas
Consideraram os opositores que era fundamen- As Nações Unidas não têm nem reivindicam o mono- (1) Bodin, século XVI.
tal respeitar o Direito Internacional e que, portanto, pólio de nenhum desses instrumentos. Todos eles podem (2) Helms, Jesse, American Sovereignty and the UN, The
a proposta norte-americana só poderia ter concre- ser utilizados (e foram-no, de facto, na maioria dos casos) National Interest, Nova Iorque, Winter 2000/01, p. 32.
tização se fosse aprovada pelo Órgão internacio- por organizações regionais, grupos de Estados constituídos (3) Bush, Presidente George W., Discurso perante a
nal com competência legal para tomar decisões para o efeito ou Estados a título individual (4). Assembleia Geral das Nações Unidas, 12 de Setembro
sobre tal matéria, o Conselho de Segurança das A determinação dos Estados Unidos era firme de 2002 (tradução do autor deste ensaio).
(4) Boutros Boutros-Gali, Agenda para a Paz, 2.ª ed.,
Nações Unidas. e será de admitir que, se tivesse sido necessário, se Departamento de Informação, Centro de Informação das
a isso tivessem sido obrigados pela aprovação de Nações Unidas, 1995, p. 13.
Porém, o problema não está nem na avaliação qualquer proposta apresentada pelos seus oposi- (5) Citada por Tony Jenkings, Nova Desordem Interna-
do comportamento de um determinado Estado ce- tores, acabariam por, soberanamente, privilegiar cional, Expresso, 7 de Maio de 1994.
lerado, nem tão pouco na interpretação de princí- o seu interesse nacional e, mesmo assim, conse- (6 )Perle, Richard, Um Adeus às Nações Unidas, Diário
pios de Direito Internacional. guiriam constituir um grupo de Estados para o efeito, de Notícias, 29 de Março de 2003, p. 12.
4 MAIO 2003 U REVISTA DA ARMADA