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HISTÓRIAS DA BOTICA (36)




                     O Tanque de Guerra
                     O Tanque de Guerra



             ncontrei um grande obeso, com mais de  medo, ou dor, só havia prazer e quanto mais   Vai procurar apoio. Talvez consiga inverter o
             140 kg. Quis saber como tinha ficado  melhor... Era difícil inverter este ciclo vicioso,  ritmo do seu proeminente abdómen. Se o con-
         Eassim. Contou-me uma história triste de  que resumia a história de uma vida…   seguir inverterá não só a obesidade, mas uma
         um vazio que carrega desde pequeno. Havia   Atingiu uma obesidade mórbida. Não se pre-  vida dura e por vezes triste. É claro isto, dirão
         nascido de uma família pobre, de uma aldeia  ocupava muito com o que os outros achavam  muitos (aos quais já me vou habituando…), não
         alentejana. Em casa nunca havia verdadeira  dele, ficando mesmo conhecido pelo Tanque  passam de divagações filosóficas de um clínico
         abundância, de modo que se habituou a dese-  de Guerra. Também não se preocupava mui-  meio louco e lamechas. Serão certamente os
         jar ardentemente comida, como uma das ma-  to com mulheres, afinal, era demasiado gor-  mesmos que afirmavam, recentemente, serem
         ravilhas da vida. Entrou para a Marinha com  do, tinha cerca de 40 anos e sabia que ia ficar  estes escritos inconsequentes, pois teriam pouca
         19 anos. Era muito magro. Na Marinha, gostava  solteiro...Vinha à consulta, instado pelas recen-  leitura. Quem sabe, talvez estejam certos, talvez
         de tudo, era mesmo capaz de beber um litro de  tes mortes cardíacas e por se reconhecer em  fosse mais fácil dar os comprimidos e esque-
         leite, sozinho, ao pequeno-almoço. O mesmo  risco…Achou estranho, quando lhe disse que  cer a conversa…Sou muito pouco eficiente e,
         que lhe fora negado na infância...  precisava de apoio psicológico antes de tentar  de certeza, mau gestor de tempo. Não consigo
           Nunca bebia nem fumava muito, tinha pou-  qualquer dieta ou tratamento. Pensava que bas-  apenas passar a receita de uma forma mecânica
         co interesse…Mas foi comendo, de uma for-  taria ir a Endocrinologia, onde lhe prescreveriam  e simples. Sei que é a capacidade, intrínseca de
         ma constante, parecia que nada, nunca o sa-  uns comprimidos milagrosos, que lhe resolve-  compreender os outros, que nos deve caracteri-
         ciava: preferia mesmo os embarques, porque  riam subitamente, anos de uma, mesma, forma  zar como pessoas e, por certo, como médicos,
         a bordo, geralmente, a comida era farta e de  de sofrimento…          uma vez que passar uma receita desligada do
         melhor qualidade.                    Ficamos amigos. Talvez pelo tempo que falá-  contexto da pessoa é, acredito profundamente,
           Os anos foram passando e o peso crescendo.  mos – possível na paz do Alfeite -talvez porque  um acto sem arte e de muito pouco mérito...
         Há já algum tempo que se tinha apercebido do  o gordo Tanque de Guerra precisasse apenas de   A obesidade é um problema crescente na so-
         peso que não parava de aumentar. Contudo, não  desabafar. Ou talvez, pura e simplesmente, pela  ciedade em que nos tornámos. O prato tornou-
         conseguia mudar. Não sabia se era a solidão,  similitude que o ser humano vai sempre encon-  -se o prazer supremo de uma maioria de entre
         se era apenas gula, sabia, isso sim, que quando  trando na vida de outros, mesmo de marinheiros  nós, particularmente daqueles que padeceram
         se sentava a mesa tudo parecia bem, não havia  anónimos e muito gordos…  necessidades na infância e com escolaridade
                                                                                        baixa – que caracterizam, ainda
                                                                                        hoje, a grande maioria dos adul-
                                                                                        tos deste nosso país. Por sua vez,
                                                                                        basta estar atento para perceber
                                                                                        que esses pais estão a alimentar os
                                                                                        filhos até à doença, para “que não
                                                                                        passem o que eles passaram…”
                                                                                        Tudo isto apimentado por uma so-
                                                                                        ciedade (subitamente) consumista
                                                                                        cheia de frases e ideias feitas, que
                                                                                        fazem passar, por exemplo, iogur-
                                                                                        tes super-doces, como reforços da
                                                                                        imunidade infantil, com toda a
                                                                                        força que a publicidade moderna
                                                                                        consegue transmitir…
                                                                                          Eu só descobri o verdadeiro
                                                                                        signi ficado de “peso seco” em Ti-
                                                                                        mor, nos olhos, mortiços, de crian-
                                                                                        ças que olhavam para as “bola-
                                                                                        chas Maria”, que, todos os dias,
                                                                                        levava no bolso, como a última
                                                                                        iguaria divina. Lembro-me, nesses
                                                                                        dias, de pensar como o sofrimen-
                                                                                        to parecia igualmente distribuído,
                                                                                        pois se eles padeciam pela pouca
                                                                                        abundância, nós estamos conde-
                                                                                        nados, pela fartura, a sofrer a dia-
                                                                                        betes, a hipertensão, a doença
                                                                                        coronária…Como o mundo pa-
                                                                                        rece, naturalmente, igualar os ex-
                                                                                        tremos, não concorda o leitor…O
                                                                                        meio -termo será o indicado, mas,
                                                                                        como se sabe, o ser humano, indi-
                                                                                        vidualmente, ou como sociedade,
                                                                                        é muitas vezes avesso ao bom sen-

         30  AGOSTO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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