Page 284 - Revista da Armada
P. 284
HISTÓRIAS DA BOTICA (36)
O Tanque de Guerra
O Tanque de Guerra
ncontrei um grande obeso, com mais de medo, ou dor, só havia prazer e quanto mais Vai procurar apoio. Talvez consiga inverter o
140 kg. Quis saber como tinha ficado melhor... Era difícil inverter este ciclo vicioso, ritmo do seu proeminente abdómen. Se o con-
Eassim. Contou-me uma história triste de que resumia a história de uma vida… seguir inverterá não só a obesidade, mas uma
um vazio que carrega desde pequeno. Havia Atingiu uma obesidade mórbida. Não se pre- vida dura e por vezes triste. É claro isto, dirão
nascido de uma família pobre, de uma aldeia ocupava muito com o que os outros achavam muitos (aos quais já me vou habituando…), não
alentejana. Em casa nunca havia verdadeira dele, ficando mesmo conhecido pelo Tanque passam de divagações filosóficas de um clínico
abundância, de modo que se habituou a dese- de Guerra. Também não se preocupava mui- meio louco e lamechas. Serão certamente os
jar ardentemente comida, como uma das ma- to com mulheres, afinal, era demasiado gor- mesmos que afirmavam, recentemente, serem
ravilhas da vida. Entrou para a Marinha com do, tinha cerca de 40 anos e sabia que ia ficar estes escritos inconsequentes, pois teriam pouca
19 anos. Era muito magro. Na Marinha, gostava solteiro...Vinha à consulta, instado pelas recen- leitura. Quem sabe, talvez estejam certos, talvez
de tudo, era mesmo capaz de beber um litro de tes mortes cardíacas e por se reconhecer em fosse mais fácil dar os comprimidos e esque-
leite, sozinho, ao pequeno-almoço. O mesmo risco…Achou estranho, quando lhe disse que cer a conversa…Sou muito pouco eficiente e,
que lhe fora negado na infância... precisava de apoio psicológico antes de tentar de certeza, mau gestor de tempo. Não consigo
Nunca bebia nem fumava muito, tinha pou- qualquer dieta ou tratamento. Pensava que bas- apenas passar a receita de uma forma mecânica
co interesse…Mas foi comendo, de uma for- taria ir a Endocrinologia, onde lhe prescreveriam e simples. Sei que é a capacidade, intrínseca de
ma constante, parecia que nada, nunca o sa- uns comprimidos milagrosos, que lhe resolve- compreender os outros, que nos deve caracteri-
ciava: preferia mesmo os embarques, porque riam subitamente, anos de uma, mesma, forma zar como pessoas e, por certo, como médicos,
a bordo, geralmente, a comida era farta e de de sofrimento… uma vez que passar uma receita desligada do
melhor qualidade. Ficamos amigos. Talvez pelo tempo que falá- contexto da pessoa é, acredito profundamente,
Os anos foram passando e o peso crescendo. mos – possível na paz do Alfeite -talvez porque um acto sem arte e de muito pouco mérito...
Há já algum tempo que se tinha apercebido do o gordo Tanque de Guerra precisasse apenas de A obesidade é um problema crescente na so-
peso que não parava de aumentar. Contudo, não desabafar. Ou talvez, pura e simplesmente, pela ciedade em que nos tornámos. O prato tornou-
conseguia mudar. Não sabia se era a solidão, similitude que o ser humano vai sempre encon- -se o prazer supremo de uma maioria de entre
se era apenas gula, sabia, isso sim, que quando trando na vida de outros, mesmo de marinheiros nós, particularmente daqueles que padeceram
se sentava a mesa tudo parecia bem, não havia anónimos e muito gordos… necessidades na infância e com escolaridade
baixa – que caracterizam, ainda
hoje, a grande maioria dos adul-
tos deste nosso país. Por sua vez,
basta estar atento para perceber
que esses pais estão a alimentar os
filhos até à doença, para “que não
passem o que eles passaram…”
Tudo isto apimentado por uma so-
ciedade (subitamente) consumista
cheia de frases e ideias feitas, que
fazem passar, por exemplo, iogur-
tes super-doces, como reforços da
imunidade infantil, com toda a
força que a publicidade moderna
consegue transmitir…
Eu só descobri o verdadeiro
signi ficado de “peso seco” em Ti-
mor, nos olhos, mortiços, de crian-
ças que olhavam para as “bola-
chas Maria”, que, todos os dias,
levava no bolso, como a última
iguaria divina. Lembro-me, nesses
dias, de pensar como o sofrimen-
to parecia igualmente distribuído,
pois se eles padeciam pela pouca
abundância, nós estamos conde-
nados, pela fartura, a sofrer a dia-
betes, a hipertensão, a doença
coronária…Como o mundo pa-
rece, naturalmente, igualar os ex-
tremos, não concorda o leitor…O
meio -termo será o indicado, mas,
como se sabe, o ser humano, indi-
vidualmente, ou como sociedade,
é muitas vezes avesso ao bom sen-
30 AGOSTO 2004 U REVISTA DA ARMADA