Page 393 - Revista da Armada
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Lembrei-me hoje daquela resposta, a pro- cio, os meus dois mais velhos e fiéis amigos. toda a vida e que vamos colocando em mol-
pósito da carta que me escreveram e que foi Num misto de alegria e tristeza prestei-lhes duras, mais ou menos coloridas, sob um eu-
publicada nesta Revista da Armada, que é de tributo do modo que a minha alma permitia. femismo…chamamos-lhes recordações. Fo-
todos e também tem sido minha. Da mesma Ao Tejo com algum daquele sangue transpa- ram as recordações de um antigo marinheiro,
forma que o pai da Recruta, também não pos- rente e salgado, que os homens vertem quan- que, em última análise, trouxeram a Recruta
so eu ficar silencioso, perante um escrito tão do os seus espíritos estão cansados e cheios à minha presença. Estas recordações, são, até
delicado. Tenho que agradecer por imperativa pela emoção. Ao Silêncio com palavras es- melhor prova, de tanta importância como os
necessidade do Ser. Agradeço por duas razões critas, encriptadas num código que os dois Navios, as Pedras, as Fardas e os Símbolos.
profundas: a primeira prende-se com o facto partilhamos e que preenchem a morada de São o grande capital da Marinha, um tesou-
de, na minha vida, poucas coisas me terem desencanto, que tão bem conheço e onde ro, que não escolhe tempo, idade, ou hie-
tocado tanto; a segunda porque não estou ha- ele habita…Nesse dia, ainda, o Vento, que é rarquia. Eu mais não faço do que misturar
bituado a, de forma explícita e generosa, rece- o mensageiro do Silêncio e de todos os que (muitas vezes de forma rude e tosca), as re-
ber tantos elogios a propósito da minha fraca andam perdidos, trouxe-me muitas vozes de cordações de muitos, o imenso azul do ocea-
escrita. Devo acrescentar ainda – do mesmo amigos distantes, das quais ressaltava a de no e um vazio que se preenche com palavras
modo público – que o meu filho melhorou, um homem baixinho, já idoso, de imortais como estas…escritas em paroxismos de uma
voltou para casa e de certa forma à vida…Será olhos azuis, que sabe desenhar o sentimen- inquietude estranha, até para mim…
um novo começar para ele, que aprenderá, to e que me dizia num sorriso para escrever, Acredito, finalmente, que os seres humanos
quando perceber toda a extensão daquela car- escrever, escrever… são todos iguais nos sentimentos mais nobres
ta, que a vida é feita de finais e princípios e Esse dia passou e foi um bom dia…Mas e também eu, tal como o pai da Recruta, gos-
que, não raramente (por razões secretas, que todas as emoções desse dia, como compre- taria de agradecer durante os Natais vindou-
nem eu lhe sei explicar), é preciso estar perto enderá o leitor, ficariam incompletas sem ros, a quem para mim foi tão generoso. Foi
do final, para atingir o princípio… este agradecimento. Natal neste mês de Agosto, será Natal, sempre
No dia em que li essa carta, aqui confesso Em última análise o que nos une são as que for Agosto no meu coração…
com a coragem dos homens que acreditam emoções que partilhamos. As emoções são Z
já ter perdido tudo, procurei o Tejo e o Silên- assinaturas na alma, que nos acompanham Doc
BIBLIOGRAFIA
Creoula
Creoula
“Notas e fotos de embarque no navio de treino de mar”
oi num chuvoso fim-de-tarde – 27 de Outubro último na de um livro que relata a vida deste antigo navio bacalhoeiro.
Doca de Marinha – em que nem sequer faltou um suave ba- O livro chama-se Creoula “Notas e fotos de embarque no navio
Flanço, que se honrou a memória daqueles que participaram de treino de mar”, da autoria de António Santos Carvalho e Ana
nas campanhas do bacalhau na Terra Nova e Gronelândia, e cuja Lúcia Esteves, foi editado por Pedro Paradela de Abreu, neto de um
gesta continua viva através do lugre “Creoula”, com o lançamento importante armador do bacalhau, grande benemérito, e herói no
mar durante a Primeira Grande Guerra – o Capitão Abreu.
A obra começa por relatar as origens das campanhas de pesca
na Terra Nova, que remontam ao século XVI, e que já na altura
dispunham de uma frota de 150 navios, quase todos de Aveiro e
Viana do Castelo. Explica ainda a política de fomento de pescas do
Estado Novo nos anos 30, impulsionadora da renovação da frota
que nesse período lançou à água 83 navios novos, entre os quais
o Creoula e o seu gémeo Santa Maria Manuela. A história neste li-
vro – enquadrada por Ana Lúcia Esteves – tem o seu ponto alto nas
descrições das campanhas do bacalhau, bem ilustradas por ima-
gens da época, onde nos apercebemos das impressionantes con-
dições vividas por homens que embarcavam em pequenos dóris
horas sem fim, e que no regresso ao navio-mãe ainda tinham que
lavar, escalar e salgar o peixe. Para avaliar a violência deste último
trabalho, o autor refere inclusivamente que em certas povoações
as mulheres assustavam os filhos dizendo: «Mando-te embarcar
de salgador num navio de bacalhau…». Ao todo o Creoula, desde
1937 a 1973, entrou em 37 campanhas.
Prosseguindo no tempo, não passam despercebidas no livro as
figuras dos Príncipes de Gales durante uma visita ao navio, quando
decorriam os fabricos para adaptação às novas funções, e que cul-
minaram com a sua entrega à Marinha em 1 de Junho de 1987.
Mas esta obra é fundamentalmente uma mostra de excelentes
fotografias – 212 no total a preto e branco – que exemplificam a
actual missão do Creoula como Navio de Treino de Mar, ilustrando
ao mesmo tempo a intensidade e a beleza da vida a bordo.
Z
Abel Melo e Sousa
CFR RES
REVISTA DA ARMADA U DEZEMBRO 2005 31