Page 176 - Revista da Armada
P. 176
HISTÓRIAS DA BOTICA (63)
O caminho das luzes...
O caminho das luzes...
ra um homem diferente. Naveguei com
ele muitas vezes. Era uma daquelas
Epessoas que parece já ter nascido ma-
dura. Possuía um carisma pessoal inexpli-
cável. Partiu, agora, era Sargento…Sargento
de Mar, como eu lhe chamava e vou chamar
aqui com o orgulho que a palavra implica…
Fumava muito – o que é sempre uma má
escolha – partiu, assim, subitamente, em
três meses…Com ele aprendi muito sobre
a vida do mar. Sobre o vento, sobre a água.
Sobre a solidão do azul, no mar e no céu,
sobre a borrasca e sobre a bonança. Sobre
a vida e sobre a saudade…que é sinónimo
de vida para os homens do mar.
Conheci-o muito pouco tempo depois de
ter entrado na Marinha. Eu estava verdadei-
ramente verde nas lides do mar. Estivemos
os dois na mesma corveta. Ele, discreta-
mente, ia-me orientado sobre os modos de
bordo, sempre de uma forma discreta e res-
peitosa, quase imperceptível (com os anos
percebi que existiam muitas pessoas assim
na Marinha). Lembro-me da sua surpresa
quando viu que eu comprava activamen-
te e ouvia música clássica, que ele próprio
conhecia bem. Durante todos estes anos, e
já são muitos, falámos muitas vezes, quase
sempre sobre música, sobre as suas viagens
e, ultimamente, realçava até as histórias da muitas luzes se acenderam no caminho dele, todo o tempo em que o conheci, muitas
Revista da Armada e da importância (certa- com as outras dores, que a tempos regulares vezes me ocorreu que a vida secreta deste
mente exagerada) que lhes atribuía. fui sabendo, coleccionou na sua vida… homem humilde e anónimo era de uma ri-
Este Sargento de Mar era verdadeiramen- Quando a notícia da sua partida me che- queza extraordinária.
te especial, quando sabia, por alguém, de gou, senti um vazio profundo. É que, sabe- Na verdade, algumas pessoas são pura e
alguma tribulação em que me via envolvi- rá o leitor mais velho, algumas pessoas, in- simplesmente diferentes. Falam, comem e
do procurava-me para uma ou duas boas dependentemente do posto ou da cultura, sentem, mas são diferentes. O sofrimento
palavras e a sua presença sempre se apre- deixam um vazio por preencher, enquanto tocou-lhes de uma forma distinta. A dor já
sentava calma e reconfortante. Um dia, em de outras nada fica. As primeiras são como não lhes arranca mais medo, pois já o ofere-
que me viu em grande perturbação, falou- aves de gaiola, que queremos aprisionar, ceram todo. Vivem num estado de surpreen-
me no Salto de Fé. Não, não tinha nada de junto de nós. Contudo – rapidamente perce- dente leveza do Ser, que os torna extraordi-
religioso, nem ele era um homem de Igreja. bemos – têm a plumagem e o canto dema- nariamente ricos na alma. Conheci imensos
Tratava-se de uma determinada sequência siado belos para que as possamos segurar nesta grande casa, nos Cozinheiros, nos Ar-
de um filme em que o herói (que procurava na nossa casa. Temos que as deixar partir, tilheiros, nas Manobras, nos Fuzileiros…É
o Santo Graal) se atirou para um precipício, e salvar, bem junto do coração, as memó- o carisma da vida do mar, do qual este Sar-
admitindo que lhe surgiria uma ponte – in- rias que com elas partilhamos. Nesse dia, gento de Mar é o paradigma. São na minha
visível – que de facto lá estava. Acreditou em que soube que partira, aproximei-me opinião – memo que esta pouco valha – o
no que não via. Gostei muito dessa ima- dos mesmos navios, em que o conheci. Terá bem mais precioso da Marinha.
gem. Desde então muitas vezes senti assim saí do uma lágrima, que caiu num chão ven- Naquela noite, por fim, escrevi-lhe um
a necessidade de uma ponte invisível, mas toso, e ele, tomo-o por certo, lá no mar de poema. Daqueles sentidos, que fala de soli-
firme, sob os meus pés. Estou certo que o onde navega, a terá ouvido cair. dão, de mar, de saudade e, particularmente,
meu amigo e muitos marinheiros também Senti o vazio ainda, dos livros que me de amizade. Fi-lo com a força que se pode
assim já se sentiram. trazia, das histórias que contava de uma imprimir às palavras – às palavras profundas
Ele próprio não teve uma vida fácil. Um Marinha cheia de pequenos heróis, com que governam as vidas íntimas dos homens
dos seus filhos mais novos faleceu de aci- aventuras a condizer, por esse mundo (pois rectos. È a minha homenagem. Calei-me
dente de viação. A mulher tem doença car- o quintal do mais humilde marinheiro é por fim, pois a voz dos poetas é o silêncio,
díaca grave. Lembro-me de, no funeral do todo o universo navegável). Era uma Mari- presente em cada alma que parte… Espero,
filho, no mais profundo do seu desespero nha especial, da qual vou ter muitas, mui- do fundo do Ser, que o meu amigo Sargento
lhe ter, eu próprio, contado uma história tas saudades… Como saudades vou ter, de Mar, encontre o caminho das luzes, que
que sei desde pequeno: na turbulência e no desencanto, no mar foi acendendo no coração dos que tiveram
- Quando temos uma grande dor – afir- revolto em que amiúde me encontro, do a felicidade de o conhecer…
mei-lhe eu – os anjos acendem uma luz no desejo de melhoras, amigo, no pior e no Z
Céu, que um dia nos será útil…Acredito que melhor…deste meu Sargento de Mar. De Doc
30 MAIO 2009 U REVISTA DA ARMADA