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HISTÓRIAS DA BOTICA (64)



                               Os pobres do Mundo
                               Os pobres do Mundo

             ui a Barcelona a um congresso de Car-  Nas ruas de Barcelona imensos africa-  mundo em que apenas um terço da popu-
             diologia. Trata-se de um congresso de  nos vendiam artefactos ocidentais, falsos,  lação tem dois terços da riqueza mundial.
         Fnovas técnicas de diagnóstico em Car-  de um luxo que eles não ostentavam. Exi-  Não é justo, nem será moral. Ora esta crise
         diologia, a que o mundo ocidental tem (e vai  biam brilhantes óculos escuros de marcas  que atravessamos também é imoral pois foi
         continuar a ter) cada vez mais acesso. No  conceitua das, malas de senhora de famosos  a ganância que nos colocou onde estamos.
         hotel peguei no jornal diário. Interessou-me  estilistas italianos, e outros artefactos orga-  A ganância faz também com que o mundo
         uma foto de um navio espanhol, que apre-  nizados em mantas especiais, com um cabo  ocidental – na maior parte dos casos – só se
         sentava no convés um grupo de militares  cosido ao longo dos bordos – de modo a  preocupe com o mundo pobre quando os
         equipados à maneira das forças especiais e  poderem ser recolhidas num ápice, no caso  seus interesses económicos estão em risco.
         um grupo de africanos de semblante carre-  de investida policial…À noite, nas ruas da-  Os africanos, compreendemos facilmen-
         gado. Discutia-se, em detalhe, o que fazer  quela bela cidade, os mesmos africanos  te, vão continuar a procurar a Europa sim-
         dos piratas somalis, que aquele vaso de guer-  dormiam por baixo de bancos, em recantos  plesmente porque os seus países não lhes
         ra – em missão nas costas de África – tinha  escuros entre prédios, sobre cartões cane-  oferecem outra alternativa. Admite-se que
         capturado. Um juiz espanhol ditava a sua ex-  lados, nada luxuosos, que lhes serviam de  qualquer ser humano preferiria ficar na sua
         tradição para Espanha, onde seriam devida-  colchões e de cobertores…  terra natal (em vez de se sujeitar a trabalhos
         mente julgados, outro, do Supremo Tribunal   Nessa noite no silêncio da noite, no meu  indignos e a maus tratos de todos os tipos),
         de Espanha, afirmava que não. Segundo ele,  confortável quarto de hotel, tudo me pare-  se lhe fosse possível levar qualquer tipo de
         Espanha não tinha jurisdição sobre aqueles  ceu relacionado: os piratas da Somália perse-  vida digna. Do mesmo modo os piratas ac-
         corsários do século XXI, que deveriam ser  guidos pelo poder ocidental e os vendedores  tuais são, como se sabe desde há muito, fru-
         entregues ao país africano, em cujas águas  africanos, perseguidos pela polícia Catalã.  to de estados sem lei – selvagens e primiti-
         territoriais havia sido cometido o delito…  Tudo tem a ver com a imoralidade de um  vos no pior sentido da palavra – que geram
                                                                                    violência e degradação social. Ora,
                                                                                    sabemos bem, e a história da recente
                                                                                    confirma, que os ocidentais tiveram
                                                                                    em África e noutros continentes ati-
                                                                                    tudes de grande hipocrisia. Senão ve-
                                                                                    jamos, governos corruptos são apoia-
                                                                                    dos desde que sejam parciais a este
                                                                                    ou aquele negócio de um país, ou
                                                                                    empresa do Ocidente. Outras vezes,
                                                                                    bastam razões de afiliação política
                                                                                    para apoiar este ou aquele ditador,
                                                                                    desde que este se mantenha na esfera
                                                                                    desta ou daquela potência ocidental.
                                                                                    Exemplo recente destas atitudes tem
                                                                                    sido a forte ligação do nosso “tecido
                                                                                    empresarial europeu” – como ago-
                                                                                    ra se designa eufemisticamente um
                                                                                    grupo de gestores sem escrúpulos,
                                                                                    preocupados em gerar lucro fácil,
                                                                                    capazes mesmo de almoçar pacifi-
                                                                                    camente com dirigentes que vivem
                                                                                    na maior ostentação, ainda que ro-
                                                                                    deados por todo o lado da mais ab-
                                                                                    jecta miséria – a muitos países do
                                                                                    continente negro. Se houver dúvidas,
                                                                                    basta meditar sobre o recente exem-
                                                                                    plo do milagre angolano. Ninguém
                                                                                    parece particularmente preocupado
                                                                                    com o sofrimento global da popula-
                                                                                    ção angolana desde que, é claro, flua
                                                                                    o dinheiro…
                                                                                      São estas as leis em vigor neste
                                                                                    nosso mundo, nada diferentes da ló-
                                                                                    gica medieval de conquista a todo o
                                                                                    custo. É este o ciclo vicioso que per-
                                                                                    petua a injustiça no mundo. E não
                                                                                    pense o leitor incauto que esta lógica
                                                                                    só afecta países longínquos, na ver-
                                                                                    dade esta mesma lógica esteve na gé-
                                                                                    nese da crise que o mundo ocidental
                                                                                    agora atravessa. Foi o mesmo “tecido

         30  JUNHO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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