Page 356 - Revista da Armada
P. 356
HISTÓRIAS DA BOTICA (68)
A voz do meu contentamento…
A voz do meu contentamento…
e o velho lobo do mar…
e o velho lobo do mar…
gens como eram a minha convicção da pouca importância
no princípio, só que esta actividade tem no cômputo geral
a roupagem se da Marinha e, certamente, da pouca impor-
apresenta mais tância que tem para a Medicina Naval. Ele
camuflada... esboçou um sorriso – foi o primeiro que lhe
Todas estas pro- senti nesse dia – e afirmou:
fundas considera- -Você ainda é jovem, acredite que o futu-
ções me ocorre- ro lhe dirá se são importantes…
ram a propósito de Apertámos as mãos, acompanhei-o na
um homem grisa- escada, protegendo-o das armadilhas que
lho, já amparado os trabalhadores da construção deixaram
por uma bengala, no caminho, da mesma forma que todos
de ar austero e so- gostamos que nos protejam do mal e do
lene – tanto que sofrimento. Tinha um condutor à espera.
temi que me vies- Saiu tão subitamente como entrou, mas
se admoestar por ficou-me no espírito…a sua voz do meu
qualquer motivo contentamento…
desconhecido. Agradeço-lhe daqui, da única forma que
Decidi chamar- sei, com esta escrita sem jeito, que procu-
-lhe Velho Lobo- ro verdadeira e transparente. Este Lobo-do-
-do-Mar, à falta -Mar fez-me sentir que o silêncio que faço
de melhor nome na alma tinha valor e encheu-me da alegria
que lhe caracte- e do sentimento de limpeza que é apanágio
rizasse o carácter dos deserdados da sorte – que tantas vezes
e uma alma forte, foram os temas destes escritos. Nesse dia,
que transparecia ainda, senti que haverá justiça. Naquele
…Está difícil encontrar um fim para o po- no olhar. Pediu para falar comigo à secretá- preciso momento tudo me fez sentido. –
ema da minha vida – diz o velho samurai, ria do Centro de Medicina Naval. Não, não Percebi porque me emociono quando ouço
ao seu aluno. queria discutir nenhum problema de saúde Nessun Dorma, de Giacomo Puccini, per-
- Não sou escritor mestre, mas sinto que dele ou de qualquer familiar. “Queria só fa- cebi que a luz e a vida têm nuances sempre
o verso se esconde no vento – responde o lar”, anunciou ela num suspiro, perturbada diferentes, dependendo do coração mais do
aluno enquanto os seus olhos perscrutavam com o ar sóbrio e voz intimidatória do nosso que do olhar de quem as vê, ou sente….
os invasores mongóis, que se aproximavam antigo marinheiro… Cometi até o supremo pecado de acredi-
da praia… Para meu grande espanto, vinha falar das tar que tenho um dom, não uma marca de
In O Vento Divino, autor desconhecido histórias – sim, “as da Botica”, confirmou desgraça. Percebi, finalmente, que o que
perante o meu olhar de espanto. Afirmou é arte para alguns, para outros nunca será
odos procuramos, em menor ou maior ainda que, como assinante da Revista da compreen sível e isso magoa-os…É um pro-
grau, justiça. Procuramos satisfação Armada, as coleccionava desde o princí- cesso do qual não tenho qualquer controlo,
Tpara o nosso esforço, satisfação para a pio, há cerca de 9 anos. Ainda se lembrava porque não consigo escrever o que agrada-
nossa alma. Contudo, muitos procuram jus- da primeira – “a da Estrela no Céu”. Sur- ria àquela larga maioria, nem estou certo de
tiça uma vida toda, sem nunca a encontrar. preso, desvalorizei o assunto. Na verdade, desejar escrever assim…
Outros, os que têm alma religiosa, acredi- muitas vezes fui criticado pelas histórias e Do mesmo modo, acredite o leitor assíduo,
tam que a justiça vem sempre, embora num admito ter pago um preço pelo meu estilo todas as histórias – sejam elas boas ou más –
tempo que pode não ser o nosso. Este é o tão íntimo de escrita. Quem critica as mais nascem de um profundo lago de memórias,
caso de muitas pessoas ligadas à arte, mes- das vezes – tenho-o como seguro – seria onde a água tem outra cor, o tempo é infinito
mo de alguns que constituem hoje marcos incapaz de escrever e duvido mesmo que e a verdade é cristalina…Eu, como o velho
do ser português, como o imortal Camões, tenha lido alguns dos verdadeiros mestres samurai da citação acima, também espero
que conviveu particularmente mal com o do presente e do passado. Saberia, se assim que o vento me ajude a escrever o poema da
seu tempo, e de outros em que a História fosse, que a arte provém da perplexidade. minha vida. O gasto marinheiro, apesar de
não deixou fenecer o nome ou a obra… Este estado de alma não se escolhe, nem se toda a rudeza aparente, sente – também ele
Muitas vezes a injustiça não depende de pratica...simplesmente acontece. É…e isso no vento Norte – a poesia da sua própria vida.
ninguém, mas do destino que nos calhou deveria bastar… Só assim se explica que, quem comandou ho-
em sorte. A explicação para isso perturbou Ao contrário, aquele homem antigo vinha mens e navios, sinta a força que as palavras
e baralhou filósofos e religiosos durante sé- agradecer. Adiantou, assim, palavras since- carregam... Se o único mérito destas histórias
culos. Noutras ocasiões, ainda, a justiça de- ras, porque me pareceram vindas de um ser for agradar à minoria que sente os sonetos no
pende de todos os que nos rodeiam e, neste pouco dado a elogios, sobre sensibilidade, azul do mar e no sentir do fim da tarde, na
mundo em que o que interessa mais parece beleza e, para meu grande espanto, sobre a praia, sei que valerá a pena....
ser o que muda menos – que é o coração do história da instituição Marinha e de como as Z
homem, as atitudes permanecem tão selva- histórias são importantes. Retorqui-lhe com Doc
30 NOVEMBRO 2009 U REVISTA DA ARMADA