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HISTÓRIAS DA BOTICA (68)



               A voz do meu contentamento…
                A voz do meu contentamento…

                          e o velho lobo do mar…
                          e o velho lobo do mar…


                                                               gens como eram  a minha convicção da pouca importância
                                                               no princípio, só  que esta actividade tem no cômputo geral
                                                               a roupagem se  da Marinha e, certamente, da pouca impor-
                                                               apresenta mais  tância que tem para a Medicina Naval. Ele
                                                               camuflada...     esboçou um sorriso – foi o primeiro que lhe
                                                                 Todas estas pro-  senti nesse dia – e afirmou:
                                                               fundas considera-  -Você ainda é jovem, acredite que o futu-
                                                               ções me ocorre-  ro lhe dirá se são importantes…
                                                               ram a propósito de   Apertámos as mãos, acompanhei-o na
                                                               um homem grisa-  escada, protegendo-o das armadilhas que
                                                               lho, já amparado  os trabalhadores da construção deixaram
                                                               por uma bengala,  no caminho, da mesma forma que todos
                                                               de ar austero e so-  gostamos que nos protejam do mal e do
                                                               lene – tanto que  sofrimento. Tinha um condutor à espera.
                                                               temi que me vies-  Saiu tão subitamente como entrou, mas
                                                               se admoestar por  ficou-me no espírito…a sua voz do meu
                                                               qualquer motivo  contentamento…
                                                               desconhecido.     Agradeço-lhe daqui, da única forma que
                                                               Decidi chamar-  sei, com esta escrita sem jeito, que procu-
                                                               -lhe Velho Lobo-  ro verdadeira e transparente. Este Lobo-do-
                                                               -do-Mar, à falta  -Mar fez-me sentir que o silêncio que faço
                                                               de melhor nome  na alma tinha valor e encheu-me da alegria
                                                               que lhe caracte-  e do sentimento de limpeza que é apanágio
                                                               rizasse o carácter  dos deserdados da sorte – que tantas vezes
                                                               e uma alma forte,  foram os temas destes escritos. Nesse dia,
                                                               que transparecia  ainda, senti que haverá justiça. Naquele
           …Está difícil encontrar um fim para o po-  no olhar. Pediu para falar comigo à secretá-  preciso momento tudo me fez sentido. –
         ema da minha vida – diz o velho samurai,  ria do Centro de Medicina Naval. Não, não  Percebi porque me emociono quando ouço
         ao seu aluno.                      queria discutir nenhum problema de saúde  Nessun Dorma, de Giacomo Puccini, per-
            - Não sou escritor mestre, mas sinto que  dele ou de qualquer familiar. “Queria só fa-  cebi que a luz e a vida têm nuances sempre
         o verso se esconde no vento – responde o  lar”, anunciou ela num suspiro, perturbada  diferentes, dependendo do coração mais do
         aluno enquanto os seus olhos perscrutavam  com o ar sóbrio e voz intimidatória do nosso  que do olhar de quem as vê, ou sente….
         os invasores mongóis, que se aproximavam  antigo marinheiro…          Cometi até o supremo pecado de acredi-
         da praia…                            Para meu grande espanto, vinha falar das  tar que tenho um dom, não uma marca de
                  In O Vento Divino, autor desconhecido  histórias – sim, “as da Botica”, confirmou  desgraça. Percebi, finalmente, que o que
                                            perante o meu olhar de espanto. Afirmou  é arte para alguns, para outros nunca será
             odos procuramos, em menor ou maior  ainda que, como assinante da Revista da  compreen sível e isso magoa-os…É um pro-
             grau, justiça. Procuramos satisfação  Armada, as coleccionava desde o princí-  cesso do qual não tenho qualquer controlo,
         Tpara o nosso esforço, satisfação para a  pio, há cerca de 9 anos. Ainda se lembrava  porque não consigo escrever o que agrada-
         nossa alma. Contudo, muitos procuram jus-  da primeira – “a da Estrela no Céu”. Sur-  ria àquela larga maioria, nem estou certo de
         tiça uma vida toda, sem nunca a encontrar.  preso, desvalorizei o assunto. Na verdade,  desejar escrever assim…
         Outros, os que têm alma religiosa, acredi-  muitas vezes fui criticado pelas histórias e   Do mesmo modo, acredite o leitor assíduo,
         tam que a justiça vem sempre, embora num  admito  ter pago um preço pelo meu estilo  todas as histórias – sejam elas boas ou más –
         tempo que pode não ser o nosso. Este é o  tão íntimo de escrita. Quem critica as mais  nascem de um profundo lago de memórias,
         caso de muitas pessoas ligadas à arte, mes-  das vezes – tenho-o como seguro – seria  onde a água tem outra cor, o tempo é infinito
         mo de alguns que constituem hoje marcos  incapaz de escrever e duvido mesmo que  e a verdade é cristalina…Eu, como o velho
         do ser português, como o imortal Camões,  tenha lido alguns dos verdadeiros mestres  samurai da citação acima, também espero
         que conviveu particularmente mal com o  do presente e do passado. Saberia, se assim  que o vento me ajude a escrever o poema da
         seu tempo, e de outros em que a História  fosse, que a arte provém da perplexidade.  minha vida. O gasto marinheiro, apesar de
         não deixou fenecer o nome ou a obra…  Este estado de alma não se escolhe, nem se  toda a rudeza aparente, sente – também ele
           Muitas vezes a injustiça não depende de  pratica...simplesmente acontece. É…e isso  no vento  Norte – a poesia da sua própria vida.
         ninguém, mas do destino que nos calhou  deveria bastar…               Só assim se explica que, quem comandou ho-
         em sorte. A explicação para isso perturbou   Ao contrário, aquele homem antigo vinha  mens e navios, sinta a força que as palavras
         e baralhou filósofos e religiosos durante sé-  agradecer. Adiantou, assim, palavras since-  carregam...  Se o único mérito destas histórias
         culos. Noutras ocasiões, ainda, a justiça de-  ras, porque me pareceram vindas de um ser  for agradar à minoria que sente os sonetos no
         pende de todos os que nos rodeiam e, neste  pouco dado a elogios, sobre sensibilidade,  azul do mar e no sentir do fim da tarde, na
         mundo em que o que interessa mais parece  beleza e, para meu grande espanto, sobre a  praia, sei que valerá a pena....
         ser o que muda menos – que é o coração do  história da instituição Marinha e de como as               Z
         homem, as atitudes permanecem tão selva-  histórias são importantes. Retorqui-lhe com               Doc

         30  NOVEMBRO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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