Page 30 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (74)

O destino, o preço de uma escolha e o amor…

  “ …A alma tem que continuar a amar no                     descobriram, que nesse bar ela fazia mais do      simples, concluirá o leitor atento – sofre de
vazio, ou, pelo menos, a querer amar nem                    que apenas servir bebidas…Um outro irmão          falta de amor. Sim todo o amor é sagrado e
que seja com uma infinitésima parte dela…                    está preso. Pertencia a uma quadrilha que         está presente em tudo o que somos, para o
mas se a alma deixar de amar, cai, já aqui, em              roubava carros e os “exportava” para um país      que contribui o amor de muitos, alguns nun-
algo quase equivalente ao inferno…”                         africano…O nosso Marinheiro Z ingressou nas       ca reconhecidos…Cada um de nós não está
                                                            fileiras da Armada, assim que a idade o per-       só. É sempre filho de alguém, pai de alguém
                                  Simone Weil, Paris, 1966  mitiu. Finalmente, o irmão mais novo arranjou     e amigo de alguém, numa cadeia interminá-
                                                            um emprego temporário na Câmara. Quando o         vel que nos sustém, tanto ou mais que o pão
Avida de médico está cheia de surpresas.                    contrato acabou, decidiu emigrar para a Irlan-    que comemos…Quando não temos amor, fi-
       Assim foi quando um outro médico,                    da. Não se falavam há muitos meses…               camos azedos e tristes, perdidos…foi isso que
       mais novo, me trouxe o Sr. Marinhei-                                                                   terá acontecido a este marinheiro. Deixou de
ro Z. Este marinheiro tinha sido apanhado no                  O Sr. Marinheiro Z contou esta história mais    amar e caiu num abismo, como está bem ex-
controle toxicológico, regular e aleatório. Tra-            depressa do que eu a consegui escrever, como      presso na citação acima…
tava-se de um jovem magro – extremamente                    se fosse banal… Chamei o enfermeiro do na-
magro, como se vivesse numa qualquer espé-                  vio. Este confirmou que o Marinheiro Z era asi-      Decidi escrever esta história, porque a es-
cie de deserto, onde a comida fosse escassa.                lante e homem de poucas falas, não sabia mais     crita é como o vento. Nasce, na vida de quem
Grisalho antes da velhice, tinha um olhar frio              nada dele. Fiz depois dois telefonemas, um        sente as vibrações profundas do mundo, vinda
e um semblante de quem já teria olhado várias               para uma psicóloga, porque achei que aque-        não se sabe de onde. Não se escolhe, não se
vezes a morte nos olhos e havia sobrevivido…                le marinheiro precisava de ajuda
Quando entrou, arrastou um vazio estranho:                  daquele foro. O outro foi para o                  deseja…É a voz que nasce no lado esquerdo
silencioso e pesado. Tornou-se escura, subita-              imediato do navio em causa. Su-                   no peito. De certa forma também é uma forma
mente, aquela manhã radiosa…                                mariamente lá lhe expliquei que                   de amor. O amor dá sentido às nossas vidas.
                                                            acreditava que o seu marinheiro                   Por ele vale a pena escrever. Por ele vale a pena
  Não foi o procedimento administrativo, des-               precisava mais de ajuda, do que                   lutar. Por ele vale a pena mesmo ser perseguido
poletado por uma análise toxicológica positi-               de castigo…                                       e maltratado…O amor explica, na sua razão
va, que o trouxe à minha presença. Outros já                                                                  última, porque gostamos tanto de algumas pes-
haviam tratado disso.Veio acompanhado pelo                    Nos dias seguintes a história                   soas e detestamos outras, nem que se apresen-
jovem discípulo de Esculápio, pela taquicardia.             do Sr. Marinheiro Z esteve sem-                   tem embrulhadas em papel brilhante, porque o
Numa observação de rotina, aquele jovem mé-                 pre na minha mente. Pequenos                      amor não se finge, nem se compra…
dico descreveu uma frequência cardíaca con-                 sinais do mundo pareceram-me
tínua de cerca de 120 pulsações por minuto,                 mais valiosos. Abracei os meus                      Espero que o Sr.Marinheiro Z não tenha ain-
mesmo fora do ambiente médico e sem esforço                 filhos de outra forma, como se o                   da perdido toda a capacidade de amar, pois
ou ansiedade aparente (o enfermeiro do navio                mundo fosse de uma fragilidade                    amar é também acreditar no que não se vis-
concordava acenando, lentamente, com a ca-                  extrema e todo o carinho valioso.                 lumbra. Se o Marinheiro Z acreditar, nem que
beça). Fez um electrocardiograma, o ritmo era               Pensei, também, muito no preço                    seja com a infinitésima parte do seu ser, talvez
de facto elevado, mas era apenas um exagero                 do destino. Pensei que este jovem                 seja possível recuperar algum do amor que lhe
da normalidade, pelo mesmo mecanismo pelo                   devia viver numa solidão extrema                  terá sido negado e que era seu por direito…É
que nos adaptamos ao esforço ou, por exem-                  e, nestas situações, talvez a dro-                esse o meu mais profundo desejo.
plo, ao medo…O paciente não falava, olhava                  ga – que é uma forma de suicídio
para um lugar distante, à maneira dos seres en-             lento – provavelmente se apre-                                                                       Z
jaulados, que – sinto na alma – se refugiam em              sentaria como a escolha lógica…                                                               Doc
lugares onde serão sempre livres, pois a pior               Achei que antes de o julgar teria
prisão não é a do corpo é a da alma.                        que procurar compreendê-lo…
                                                            Nesse esforço tudo fazia sentido:
  Não resisti, quis falar com ele a sós…Man-                o coração dele que batia muito depressa, o
dei sair todos e lá consegui que falasse. Falou             medo no seu olhar, a dança da morte que fa-
devagar, mas contou a sua vida…Passou toda                  zia com a vida…
a sua infância num subúrbio da Margem Sul,
não muito longe do Alfeite. O pai bebia. Che-                 Se pensarmos bem e se tivermos caridade
gando a noite gritava e batia em todos lá em                (…um bem em grande escassez…), talvez seja
casa, começando pela mãe. Aquilo durou até                  possível aceitar que, provavelmente, este Sr.
aos 17 anos do Marinheiro Z. O pai acabou                   Marinheiro Z está a pagar o preço por uma es-
por morrer cedo. Adormeceu na berma da es-                  colha que talvez não tenha sido exclusivamen-
trada e foi atropelado. Ficou com os três irmãos            te sua. Chegaremos, num esforço de empatia,
e a “velha” mãe, ela teria 40 anos nessa altura,            a uma conclusão com que sou confrontado
mas estaria já muito doente e “tomava muitos                vezes e vezes sem conta nesta profissão que
comprimidos”. Morreu pouco tempo depois,                    escolhi…que pena que alguns tenham que pa-
no Hospital Garcia de Orta, teve uma “trom-                 gar um preço por escolhas que não foram de-
bose”, parece que tinha há muitos anos uma                  les. Certamente, este rapaz gostaria de ter tido
hipertensão arterial, difícil de controlar…                 um pai de quem se pudesse orgulhar, uma mãe
                                                            que não morresse em sofrimento e os irmãos
   A irmã mais velha começou primeiro a tra-                perto…As suas escolhas seriam outras, mas
balhar num bar em Cacilhas, para sustentar a                não escolhemos o nosso destino…escolhemos
família. Vive agora algures no Norte do país.               apenas a forma como o aceitamos…
Partiu quando alguns clientes, antigos vizinhos,
                                                              O diagnóstico do Sr. Marinheiro Z parece
30 MAIO 2010 U REVISTA DA ARMADA
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