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A Diversidade de Embarcações Tradicionais
                do Estuário do Tejo

ENQUADRAMENTO                             de Água Cima, cujo pequeno porte e ca- Quanto ao primeiro factor, importa ter
O património marítimo-fluvial do Estuário racterísticas do fundo tornava-os embarca- em conta que estas embarcações eram
do Tejo, na sua dupla vertente material e ções aptas a navegar ao longo do rio Tejo construídas, em grande medida, sem re-
imaterial, constitui a marca indelével de uma (incluindo os seus afluentes e valas), até aos curso a planos geométricos de construção.
profunda relação histórica e cultural das po- portos do “rio acima”.                            Eram antes utilizados moldes (ou grades)
voações ribeirinhas com o Tejo. Gentes que Desde matérias-primas até produtos aca- próprios de cada estaleiro, os quais respei-
fizeram deste estuário o seu modo de vida, bados (incluindo o fornecimento de frescos tavam a técnica, o estilo do Mestre carpin-
gentes cujas vidas se confundem e foram e cereais e de lenha para os fornos de pão de teiro naval e as especificações requeridas
marcadas pelas cadências do Tejo e pelas vi- Lisboa), sal e vinho, areia e cortiça, açúcar pelo armador. Ora, a multiplicidade de
vências por este propiciadas.             e cereais, carvão ou lixo, era vasta a gama estaleiros que povoavam as margens do
Na vertente material, as embarcações tra- de mercadorias/produtos transportados por estuário e que se dedicavam à construção
dicionais do Estuário do Tejo apresentam-se estas embarcações. Foi, assim, possível sus- e reparação de embarcações tradicionais
talvez como os principais elementos patri- tentar o desenvolvimento de uma vasta frota deixa perceber como este factor contri-
moniais simbolicamente representativos da fluvial, cuja diversidade e especificidades buiu para a existência de embarcações
cultura ribeirinha e da identidade local dos importa considerar (Figura 1).                     com características técnicas diferenciadas
territórios da borda d’água. A diver-                                                           no quadro da tipologia de embar-
sidade de embarcações tradicionais                                                              cações existentes. Ademais, há que
deste estuário constitui, aliás, um                                                             considerar que são vários os casos
dos mais importantes conjuntos pa-                                                              de embarcações tradicionais do
trimoniais flutuantes portugueses e                                                             Estuário do Tejo construídas em es-
europeus.                                                                                       taleiros navais localizados noutros
Neste sentido, o presente artigo                                                                pontos do país (e.g. região da ria de
procura esboçar uma síntese desta                                                               Aveiro), nomeadamente Varinos.
diversidade tipológica de embarca-                                                              Quanto ao segundo factor, este
ções vocacionadas para o transporte                                                             prende-se com a necessidade de
fluvial de mercadorias: as Fragatas,                                                            resposta às diferentes procuras do
os Varinos, as Faluas, os Canguei-                                                              transporte fluvial, associadas às
ros, os Botes, os Botes-de-fragata, os                                                          quais se verificavam requisitos es-
Botes do Pinho, os Barcos de Água Fig.1 - Embarcações tradicionais atracadas no Cais da Ribeira pecíficos de transporte. Cita-se um
Acima, as Canoas e os Catraios. Um Nova, Lisboa.                                                exemplo. A embarcação Cangueiro
objectivo enquadrável no desígnio                                                               apresentava um conjunto de carac-
de preservação e salvaguarda da                                                                 terísticas técnicas que decorria da
memória histórica e cultural deste                                                              especificidade do serviço de trans-
património, através da dissemina-                                                               porte para o qual foi concebida: o
ção do conhecimento sobre as suas                                                               transporte de materiais de constru-
especificidades e funções.                                                                      ção – portanto, materiais pesados –,
Com efeito, recuando até à pri-                                                                 cuja operação de carga era muitas
meira metade do século XX, en-                                                                  vezes realizada com a embarca-
contramos um Estuário do Tejo que,                                                              ção “abicada à praia”; como tal,
para além de se constituir como o                                                               o formato da popa da embarcação
sustentáculo do desenvolvimento                                                                 – “popa fechada” – (principal ca-
de um amplo conjunto de activi-                                                                 racterística técnica diferenciadora),
dades, se afirmava como um meio                                                                 era de grande utilidade para cortar
de transporte fulcral para a Região                                                             a vaga, minimizando o efeito do
de Lisboa. Na actividade das em-                                                                embate da mesma.
barcações tradicionais de carga                                                                 Quanto ao último factor explica-
destacava-se então o abastecimento                                                              tivo (as áreas de operação das em-
da cidade de Lisboa, o transporte de    Fig.2 - Fragata “Ninfa” navegando no Estuário do Tejo.  barcações), as condições naturais

mercadorias de e para o Porto de Lisboa,  FACTORES EXPLICATIVOS                                 do Estuário do Tejo (e “rio acima”) deter-
assim como as operações de carga e des-                                                         minaram o desenvolvimento de adapta-
carga dos navios de grande porte fundea-  DA DIVERSIDADE DE EM-                                 ções técnicas nas embarcações. O fundo
dos neste porto.                          BARCAÇÕES TRADICIONAIS                                chato dos Varinos e dos Barcos de Água
                                                                                                Acima é disso exemplo maior.
 Importa ainda destacar que no plano de
água estuarino existiam (e existem) con- Para NABAIS (2009: 3), a grande diver- Para além destes factores, também a
dições diferenciadas de navegabilidade, sidade de embarcações tradicionais por- existência de vários tipos específicos de
facto que obrigou a adaptações técnicas tuguesas é explicada pelo estilo próprio embarcações precedentes, a partir das
das embarcações que nele navegavam. É o de cada estaleiro/povoação, pelas funções quais foram desenvolvidas adaptações ao
caso dos Varinos (fundo chato), utilizados que estas embarcações desempenhavam e longo do tempo (decorrentes das evolu-
para navegar nas águas pouco profundas pelas suas áreas de operação. Tais factores ções técnicas, tecnológicas e funcionais),
da generalidade dos esteiros que permitiam explicativos são passíveis de transposição terá influído na diversidade de embarca-
penetrar nas margens recortadas do arco ri- para o caso específico das embarcações ções verificada em momento posterior.
beirinho Sul. É também o caso dos Barcos tradicionais do Estuário do Tejo.                      Referidos os factores explicativos da di-

                                                                                                REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2013 15
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