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REVISTA DA ARMADA | 482

ACADEMIA DE MARINHA

À procura da

arca perdida

l ançado no passado dia 12 de Novembro no auditório da               encontraria a velha arca onde Pedro Nunes guardou muitos dos
    Academia de Marinha este livro contém as memórias do             seus trabalhos, de que nos fala um dos seus netos mas que nunca
comandante António Estácio dos Reis, publicadas em edição do         foi encontrada. Descobriu, todavia, depois de todos os anos dedi-
autor, pouco depois de ter completado noventa anos de idade.         cados ao estudo, que essa “arca” existe dividida por bibliotecas e
                                                                     arquivos e espalhada pelo fundo do mar, onde repousam despo-
   Uma vida plena, aqui espelhada por um conjunto de episó-          jos de vários séculos de navegações. Foi de lá que vieram muitos
dios e experiências que o próprio seleccionou, de entre muitos       dos astrolábios que recuperou ou ajudou a recuperar para o pa-
milhares de páginas que foi coleccionando ao longo dos anos,         trimónio português e para o nosso Museu de Marinha.
ordenados sem outro critério que não fosse a própria sensi-
bilidade para os factos vividos. Os verdadeiros livros de me-          Os mais significativos episódios do que foram duas vidas ou
mórias transmitem-nos muito mais do que um relato de fac-            duas carreiras profissionais estão descritos nesta obra, de onde
tos cronologicamente alinhados. Na sua leitura esperamos usu-        sobressai a forma como sempre encarou a vida. E esta é a ques-
fruir de uma visita guiada e comentada à vida do autor, onde         tão que me parece mais fascinante da obra agora apresentada a
emerge toda a sua subjectividade e onde os factos são apenas         público: a permanente serenidade com que encarou os desafios
um meio de chegar à pessoa. E as memórias do comandante              mais complexos da sua vida, desde a relação difícil com o gover-
Estácio dos Reis têm todas essas qualidades. Na narrativa pode-      nador de Macau à forma como encontrou o único quadrante náu-
mos identificar com alguma facilidade duas partes distintas e com    tico que dispunha de um nónio igual ao que Pedro Nunes conce-
pesos diferentes na obra, apesar de nenhuma delas poder ser de-      bera. Nos noventa anos da sua existência tudo o que lhe aconte-
signada como de menor importância. Nos primeiros capítulos, fa-      ceu foi um feliz acaso de serendipidade, como explica. Não se lhe
la-nos da sua juventude, quando frequentou o Liceu Pedro Nunes       vislumbra uma amargura no discurso, a não ser quando nos fala
e se entregou às paixões próprias da idade, como a prática do bi-    da perda da sua esposa Maria Ester que, de resto, tem um lugar
lhar e do pingue-pongue. Segue-se a sua carreira como oficial da     fundamental em toda a obra. O enorme optimismo antropológico
Marinha, a começar em 1943 com a entrada para a Escola Naval         que transparece da escrita corresponde, aliás, à forma como se
que, de certo modo, ainda continua na forma adequada, acumu-         relaciona com os amigos e como está em todos os eventos, sejam
lando 70 anos de experiência.                                        eles sociais ou científicos. À procura de uma arca perdida é, assim,
                                                                     uma leitura para todos os marinheiros e outros amantes do mar.
   Na leitura desta primeira parte visitamos uma Marinha de ou-
tros tempos, espalhada pelo Império, entre Lisboa e Macau, numa                                                                          J. Semedo de Matos
altura em que as viagens de avião de longo curso não estavam vul-                                                                                         CFR FZ
garizadas, e as rendições podiam depender de longas travessias
de paquete. É fantástico imaginar que o jovem 2º tenente Está-
cio dos Reis e a sua esposa, Maria Ester, viajaram durante cerca
de um mês, através do Canal de Suez, Índia e Singapura para que
ele fosse ocupar o cargo de ajudante de ordens do governador
de Macau, Almirante Marques Esparteiro. E o mesmo aconteceu,
naturalmente, quando terminou a comissão e regressou a Lisboa.
Como digo, era uma Marinha diferente da que conhecemos hoje,
da qual restam poucos testemunhos directos, e estes relatos per-
mitem-nos reviver experiências únicas e inimagináveis. A carreira
militar, com uma componente operacional de grande intensidade,
sobretudo na velha esquadrilha de draga-minas que ajudou a for-
mar e na qual desempenhou quase todos os cargos que eram pos-
síveis a um oficial, terminou com o cargo de Adido Naval em Fran-
ça, de onde regressou em 1980. Passou à reserva e ficou colocado
no Museu de Marinha iniciando uma outra vida, cujo relato ocupa
uma segunda parte deste seu livro de memórias, muito mais volu-
mosa e mais rica, talvez porque corresponde a uma fase de maior
anotação escrita. Estácio dos Reis esteve presente e teve papel re-
levante na maioria dos grandes acontecimentos culturais associa-
dos às recentes comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Desde então desenvolveu um persistente trabalho de investiga-
ção que o levou a publicar numerosíssimas obras e a participar em
diversos eventos científicos, de que guarda recordação intensa. A
razão do título – À procura da arca perdida – decorre desta alma
de investigador e da ânsia mítica em descobrir algo de novo. Uma
vontade que o levou a imaginar uma arca desaparecida num só-
tão durante séculos, onde ficaram guardados documentos, textos,
desenhos ou instrumentos, que podem ser a solução das mais
complexas dúvidas do cientista. O autor sonhou que um dia

                                                                     FEVEREIRO 2014 23
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