Page 2 - Revista da Armada
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A vila de

Cascais

Este ano a Marinha escolheu a emblemática vila de Cascais            fundo apagamento da sua vida urbana e económica. No final do
      para comemorar o seu dia de festa. Seguindo a tradição de      século XVIII e quase todo o XIX, sustentou-a o facto de continuar
      levar as celebrações para perto das gentes que acompa-         a ser uma das mais importantes sentinelas da barra de Lisboa,
 nham o seu dia-a-dia, cúmplices na faina do mar e onde quer que     com a sua cidadela vigilante.
 domine o cheiro do mar e da maresia. Cascais é um desses casos,
 talvez com características muito próprias, porque a silhueta das      No dia 5 de Outubro de 1863, Cascais engalanou-se de festa para
 suas arribas e do casario que sobe da praia em direcção à serra     homenagear Dª Maria Pia, filha dos reis de Itália, que vinha casar
 de Sintra sempre foi a última visão do marinheiro que parte: o      com o rei D. Luís, de Portugal. Diz-se que aquela primeira visão
 derradeiro relance da terra onde deixou a alma, a imagem da         do reino que a acolhia entrou no coração da futura rainha e que
 nostalgia e o sustento da saudade. No regresso é para ali que se    sempre ali quis voltar. A verdade é que, em 1870, o nosso rei ma-
 viram os olhares da gávea à procura dos primeiros sinais de casa,   rinheiro mandou preparar as casas da cidadela para ali instalar a
 com a alegria de mais uma missão cumprida e sentindo o calor        sua residência oficial durante o período do verão. Com o rei veio
 da proximidade da família e dos amigos deixados em terra. Par-      a corte e a mais alta nobreza do reino, invadindo as praias e os sa-
 tir e chegar é o fado de todos os marinheiros – e bem sabemos o     lões, multiplicando a festa, abrindo casas de espectáculos, trazen-
 que se sente em cada um desses momentos. Por isso Cascais tem       do os embaixadores e a burguesia emergente, renovando o núcleo
 um significado especial para os homens do mar que, durante sé-      urbano e desenvolvendo outra forma de vida. Em 28 de Setembro
 culos, deixaram a barra de Lisboa, em direcção à Índia, ao Brasil,  de 1878, pelo aniversário do príncipe D. Carlos, foi inaugurada em
 a África ou qualquer outro destino da nossa história marítima.      Cascais a primeira rede de iluminação pública eléctrica portugue-
                                                                     sa, utilizando o sistema de velas de Jablochkoff em 6 candeeiros
   Mas a vila tem a sua história própria que consolidou a soli-      colocados à volta da cidadela, num sinal evidente de uma nova era.
 dariedade com a Marinha Portuguesa, decorrendo da vivência
 quotidiana, fosse na faina da pesca, na vigilância da barra, ou no    A implantação da República adormeceu um pouco esta vertigem tu-
 desporto, no recreio e no desfrute da praia e do sol, que foram     rística que crescera com D. Luís e D. Carlos, mas a fama da costa do
 uma imagem de marca da pequena faixa costeira entre Lisboa e        sol – onde as primaveras se repetiam – era um fenómeno imparável.
 as arribas do cabo Raso. Em torno da pequena baía de Cascais,       O clima doce, as praias, a crescente construção de luxo, os espectácu-
 onde em tempos desaguava uma ribeira vinda da serra de Sin-         los, touradas, desportos e festas, fariam de Cascais e Estoril uma estân-
 tra, já existia no tempo de D. Afonso Henriques uma comunidade      cia turística de prestígio que atraia a mais alta sociedade europeia. A
 piscatória a crescer pela encosta e a desenvolver-se progressiva-   construção do caminho-de-ferro para Lisboa e, mais tarde, da estrada
 mente até formar uma vila que, no tempo de D. Manuel I, já ti-      Marginal reforçaram esta vocação descoberta pelo rei D. Luís, a que o
 nha a sua autonomia regulada por um foral próprio. O terramoto      deflagrar da 2ª Grande Guerra, com o afluxo de refugiados (e espiões),
 de 1755, e, sobretudo, o maremoto que lhe foi sequente, foram       veio dar um segundo fôlego e consolidar a posição já adquirida. Um
 avassaladores para estas gentes. Pesando as proporções ineren-      desenvolvimento que se fez sempre sem perder a ligação com o mar e
 tes à dimensão relativa das duas comunidades urbanas, poderá        com a actividade marítima, privilegiadas ao longo de todo o processo
 dizer-se que foi mais destrutivo para a vila do que para a capi-    de desenvolvimento e que, aliás, constituem a sua singularidade.
 tal do reino, apesar de tudo mais protegida da onda gerada pelo
 sismo. A verdade é que Cascais não recuperaria tão facilmente         A Marinha volta agora a Cascais para celebrar a sua festa anual,
 como Lisboa, e os anos que se seguiram à tragédia são de pro-       homenageando mais uma vez as suas gentes, a relação estreita
                                                                     que mantêm com o mar e, sobretudo, o carinho que tem pelos
                                                                     marinheiros do seu país.
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