Page 30 - Revista da Armada
P. 30
REVISTA DA ARMADA | 491 7
ESTÓRIAS
ANIMAÇÃO NOCTURNA (GUINÉ)
Já passava das dez da noite. O gerador já estava parado. O sosse- Pior que isso para se ser detectado, no mato, à noite, era o res-
go era total, só entrecortado pela conversa em que nos encon- sonar. O imediato que em estacionamentos nocturnos, em ope-
trávamos embrenhados, que já não sei qual era, mas que não será rações, ficava a uma distância minha de cerca de 100 metros, ou-
difícil imaginar. Mulheres ou guerra. Não havia muito por onde es- via-se a ressonar como se estivesse ao meu lado. Calculo que se
colher. Eram as preocupações dominantes de quem tem vinte e tal ouviria a mais de duzentos.
anos e está isolado no meio do mato, rodeado pela guerra.
E não era sozinho neste concerto. Houve noites em que se não
A noite começava a esfriar e nós prolongávamos a nossa esta- era só eu o acordado, pouco deveria faltar.
dia fora dos abrigos que tinham retido todo o calor do dia afri-
cano, em época seca, esperando por um lado que eles refrescas- Mas voltemos à nossa noite de cavaqueira junto ao abrigo.
sem um pouco, por outro que o cansaço nos atirasse para um De repente, entre duas passas no cigarro e um gole no whiskey,
sono imediato e profundo, quando neles entrássemos. ouviu-se um assobiar fortíssimo como se um avião a jacto nos
sobrevoasse a baixa altitude. Logo a seguir outro e mais outro.
Tínhamos feito uma roda com as cadeiras à frente do abrigo, Fiats àquela hora não voavam e os morcegos não assobiavam
como se estivéssemos à volta da fogueira. Nessa noite, estava assim!
eu, o imediato, o terceiro oficial e julgo que mais ninguém. Os Atirámo-nos para dentro do abrigo, eu e o imediato em simul-
outros, já dormiam. tâneo. Ficámos entalados na ombreira de entrada, no preciso
momento em que o primeiro rebentamento soou.
De quando em vez, ao longe soava o ribombar de armas pesadas. Eram os chamados foguetes de 122 mm, autopropulsionados,
Muito provavelmente algum aquartelamento do Exército a enfardar. que tinham alcances enormes. Felizmente não eram muito precisos!
Depois parava. Algumas vezes fazíamos apostas sobre quem seriam Esperámos que acabassem os rebentamentos e só então lar-
os “afortunados”. Não foi o caso nessa noite. A ninguém apetecia gámos o abrigo e viemos tentar saber onde tinham caído e se
mexer-se para ir ao posto rádio ouvir as comunicações para saber. houvera estragos.
Parecia hora de formatura para serviços.
Bebia um whiskey vagarosamente para fazer render o peixe como Estava todo o pessoal cá fora e soube-se pelo terceiro oficial
se me encontrasse num cabaret e tivesse que o pagar a preço de que subira à torre de vigia, com uma altura de 7 ou 8 metros,
oiro. A razão era outra. Não queria cair na tentação de beber um donde havia assistido ao “festival aéreo”, que haviam caído entre
segundo, um terceiro e não sei quantos mais. Era sempre assim que Ganturé e Bigene, a cerca de 400 metros do nosso aquartelamen-
as coisas começavam. O organismo debilitado pelo esforço, pelo cli- to, a 600 talvez do local onde nos encontrávamos.
ma e pela deficiente alimentação, tem no álcool um óptimo reforço − Não sabem o espectáculo que perderam, dizia ele eufórico!
energético, mas quem paga acaba sempre por ser o fígado.
Ferreira Júnior
Já vira acontecer isso com alguns. CMG
A mim já me bastava o fumar. O pior era à noite, no mato, em
operações, não podia fumar e não conseguia dormir. Eram noites N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico
intermináveis.
Havia quem fumasse com o cigarro dentro do cano da G-3, para se
não ver o clarão. Mas e o cheiro? Sabia-se da presença dum fumador
a mais de cem metros de distância. E não era preciso perdigueiro.
30 DEZEMBRO 2014