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REVISTA DA ARMADA | 499 76
VIGIA DA HISTÓRIA
DISTRACÇÕES A BORDO
Grande parte, talvez mesmo a quase mens deitavam-se a dormir” sem cui-
totalidade, do que se conhece da vida dar da devida vigilância.
a bordo das naus da Carreira da Índia
é resultado do que se recolhe na diver- Acrescenta ainda que era devido à
sa correspondência enviada pelos que permanência de mulheres a bordo que
nela andavam, fossem tripulantes, es- se verificava grande negligência no uso
pecialmente pilotos e capitães, ou fos- dos candeeiros, já que todos os que-
sem passageiros, com especial relevo, riam levar para as cobertas e câmaras,
nesta última situação, para os membros e que, por esquecimento ou descuido,
do clero que seguiam para o Oriente, os originavam incêndios, como acontece-
quais muito provavelmente constituíam ra, por duas vezes, na nau em que viaja-
o grupo mais letrado então a bordo. ra, incêndios esses que só foram extin-
tos por milagre.
Independentemente de quem fosse
o seu autor quase todas as cartas ver- Na segunda categoria o frade refere
savam, no fundamental, sobre três tó- o embarque, por parte dos capitães e
picos principais, o primeiro relacionado oficiais, de mercadorias proibidas, não
com as novidades que a viagem propor- pagando os respectivos direitos, o que
cionava, como era o caso das tempes- para além do prejuízo para a Coroa, im-
tades, dos peixes voadores, das grandes pedia o embarque da água necessária à
diferenças de temperatura, outro pelo gente que seguia embarcada, salientan-
engrandecimento da acção desenvol- do ainda o facto de que os capitães das
vida a bordo pelos seus autores, quer naus usavam, em proveito próprio, as
quanto à navegação, quer quanto ao boticas destinadas ao tratamento dos
apoio que prestavam nas diversas acti- doentes, levando até que alguns mor-
vidades de bordo e, por último, relati- ressem à fome.
vamente aos diversos aspectos que, na
respectiva óptica, constituíam atropelo Se algumas medidas foram tomadas
aos interesses da Coroa ou da religião. para corrigir as situações apontadas
não deveriam ter tido grande sucesso
A carta que hoje se divulga, escrita pois que o que o frade refere continuou
em Goa, em 25 de Setembro de 1530, a ocorrer por muitos mais anos.
por frei Vicente de Laguna, dominicano
espanhol, insere-se na última categoria
referida, tendo como principal tema a Com. E. Gomes
ida a bordo de mulheres, facto que se
sabe ocorrer com frequência, quer fos- N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
sem familiares de passageiros, ou até Fontes
disfarçadas de homens, como já aqui re- Fonte: Corpo Cronológico 1ª Parte, Maço 45, Doc. 127
latado (Ver RA 446/NOV10), quer órfãs
ou ainda, passe a expressão, provavel-
mente sem grande fundo de verdade,
“mulheres de vida fácil”, que embarca-
vam clandestinamente.
A carta de frei Vicente debruça-se
sobre duas das categorias apontadas,
o atropelo à religião, pelo embarque
clandestino de mulheres a bordo, escre-
via ele que os tripulantes não temiam
a Deus, pois quer os capitães das naus,
quer os pilotos, tal como os mestres
e os marinheiros, todos eles levavam
clandestinamente mulheres a bordo,
que de acordo com o que relata, eram a
origem de grandes contendas a bordo,
como ainda eram a causa de má vigia
pois, na maior parte dos casos, “os ho-
26 AGOSTO 2015