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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA REVISTA DA ARMADA | 499
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O MARINHEIRO QUE ME LEMBROU
DE QUEM SOU...
À memória das poesias para salvar a vida…
Hoje é dia de tempestade, alguém me procurava na Rua do Arsenal… Era o Marinheiro
De Angra para a Horta recém-operado. Já pelo seu pé, acompanhado por um genro.
Neste fevereiro Não quis deixar Lisboa sem se mostrar.
Furioso
Balanço tanto que já não distingo a direita da esquerda, Este marinheiro lembrou-me, nesse dia, exatamente daqui-
Nem o bordo bom do bordo mau lo que sou – apenas um médico…
Um grumete acaba de perder a alma
Numa última náusea de um enjoo virulento Tivemos uma longa conversa. E eu, pelas palavras dele, re-
Há um barulho ensurdecedor quase na mesma frequência cordei vivamente os Açores… Onde tanto tempo passei. Entu-
Da ventilação ruidosa da enfermaria siasmado, naquela noite, abri o baú das folhas do passado e
Ninguém fala encontrei lá muitas palavras desse tempo e ainda mais emo-
Sente-se o vento ções, como as melhores descritas na poesia atrás, de poeta
Tal é o pranto do mar desconhecido.
Que do sentir nada sobra
Nem o medo, nem o desespero Ao final do dia, ousei sentir-me feliz. Tenho orgulho das
Fica só a esperança na bonança marcas que em mim o mar deixou. Tenho orgulho das marcas
Na manhã que se adivinha que deixei noutros e que outros em mim deixaram… pois a
Poesia de um Marinheiro Incerto maresia vai-se entranhando no sentir e… sim, todos os mari-
nheiros são poetas…
Tive um telefonema estranho, que me recordou os Açores.
Um antigo marinheiro, homem humilde, agora residente Na verdade, muitos ficam surpresos com a intimidade que
na cidade da Horta, procurou um médico residente na Praia os médicos marinheiros têm com os seus pacientes. Não co-
do Almoxarife, também no Faial. Terá tocado à campainha do nhecem a vida do mar. Não conhecem o medo seguido da es-
Portão e afirmado mais ou menos assim: perança a que o mar obriga – tal como na doença. São, segu-
ramente, os mesmos que não entendem esta escrita, cheia
– Doutor, pela sua saúde, fale lá com o seu compadre da de emoções…
Marinha. – Surpreso, o clínico açoriano retorquiu – Diga lá
então. O que se passa… Agradeço daqui a este marinheiro que me lembrou de mim
mesmo. Agradeço-lhe a ele e a todos os poetas com que em-
Então o antigo marinheiro lá afirmou que tinha sido meu barquei em mares azul-pérola, lembrados no silêncio de uma
doente há algum tempo. Em tempos, eu tê-lo-ia enviado para miríade de poesias, escondidas no nevoeiro de ilhas, verdes,
uma cirurgia cardíaca, num grande Hospital de Lisboa, que perdidas no oceano íntimo das nossas vidas…
nunca se materializou. Passou-se muito tempo. A situação
agravou. Terá tentado localizar-me no Hospital das Forças Ar- Doc
madas, onde eu também já não estou…
Recorreu a um cardiologista açoriano, que eu não conheço,
e este confirmou, com mais um exame, o diagnóstico e a ne-
cessidade premente da cirurgia. Reenviou-o para o mesmíssi-
mo hospital central de Lisboa. O nosso marinheiro continuou
à espera. Daí até ao ato desesperado de procurar o meu anti-
go amigo e compadre, foi apenas mais um passo, na procura
da resolução…
Telefonei a um outro médico, desta feita um cirurgião cardí-
aco, de um outro hospital de Lisboa. Foi finalmente operado.
Soube que a cirurgia tinha corrido bem. Que, ainda em Lisboa,
estava a recuperar bem. Por fim, percebi que a saga estava
prestes a terminar, o paciente ia ter alta…
Num outro dia, alguns dias depois, quando me preparava
para fazer a visita regular ao mítico “cirurgião capilar” (Barbei-
ro), que tem consultório ativo no Ministério, fui avisado que
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