Page 78 - Revista da Armada
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RETROSPECTIVA (6)
Desconhecido ... Muito conhecido
A hist6ria da marinha não é feita só
de batalhas navais, viagens, encalhes,
naufrágios ••• é feita também
de pequenas coisas, como estas.
e acordo com uma sugestão que em tempos fize-
mos, camarada amigo ofereceu ao signatário um
D caderno, velho de mais de 100 anos, cheio de cál-
culos náuticos e notas de viagem, que espiolhámos de
ponta a ponta.
No emaranhado de latitudes, longitudes, horas, ru-
mos, alturas do Sol, azimutes, etc., inserem-se desenhos
toscos, feitos à pena, nos quais predominam, curiosamen-
te, os de botas de várias formas e tamanhos. Há um que
representa uma corveta com a bandeira içada, na qual,
em vez do escudo nacional , tem uma bota de cano alto!
Não há legenda ou frase em todo O caderno que nos leva
a descobrir o significado destas botas. Quererão elas sim-
bolizar cálculos errados, correspondendo o tamanho a
maior ou menor erro no cálculo? Talvez, até porque em
muitas folhas não há botas ...
Pela análise dos registos. feitos aqui e além; podem
deduzir-se certas particularidades do autor: era um en joa-
do, queixando-se frequentemente do balanço; fazia ver-
sos e ... filosofava!
Segundo diz, logo na primeira página, sob o título
«Anais de um guarda-marinha», assentou praç:il. de aspi- Vict-a/miranlt Victnlt' Maria dI' Moura Cominho Almt'ida d'F.:ça
(/852-/919).
rante extraordinário no dia 17 de Outubro de 1870, fez
exame na Politécnica em 1871 , concluiu o 1.° ano da Esco-
la Naval em 1872 e o 2.° em 1873. embarcando a seguir f< Public Houses», temperado com uma pequena porção de
na fragata «O. Fernando II e Glória», onde foi despacha- poesia, que sobe envergonhada das margens das ribeiras
do guarda-marinha, em 1874. e cai das copas frondosas das árvores dos parques, produz
Segue-se uma autêntica maratona de embarques, du- em nós ideias desencontradas a vosso respeito (. . .).
rante três anos, saltando de navio em navio e de terra em Tu, inglês, de suíças enormes, que corres todo o dia
terra, com raras vindas a Lisboa. Era o período de tirod- apressado no teu «business», que constróis as grandes má-
niosexigidos então. quinas, que edificas as melhores docas e fabricas os sus-
Uma noite, a navegar, metido no camarote por ter pensórios mais perfeitos, que inventas as mais bonitas no-
«noile de almiranle»('), entreteve-se a transcrever versos çô~s do pudor e as transformas depois numa coisa ao mes-
de um poeta francês, desabafando: mo tempo tola e licenciosa (. .. ).
Quando a gente começa a faur citações é porque a ori- Os teus deuses são o dinheiro, o chá e as flanelasl Nesta
ginalidade morreu. Coitada! E como havia ela de resistir trindade resumes as tuas aspirações! (. .. ).
a esta sensaboria?! Às vezes até parece impossível como Em brevíssimas notas, para ele próprio recordar mais
não embrutecemos de lodo! O céu esquisito, o mar espe- tarde, fala também de cachimbos, dos amores com ingle-
lhado, as velas a bater nos mastros, o navio a rebolar-se sas jovens, da horrívei comida e péssimos vinhos que por
de bombordo a estibordo e o peixe mareado à volta do na- lá comeu e bebeu , da dualidade dos oficiais da Royal
vio, eis o espectáculo de um dia de calmaria. I Navy que durante o dia são «gentlemen» e à Iloite (com
Numa viagem a Inglaterra, a bordo da corveta «Barlo- os copos) ... o contrário.
lomeu Dias», escreve: Na viagem de regresso escreve: Está uma noi.~e linda!
Ó ingleses como sois originais! o fumd das vossas ofici- A Lua brilha no céu azul e o navio corre de vento em popa
nas, misturado com os vapores da cerveja que bebeis nas com cutelos e varredouras, ainda assim bem menos poético
do que o pintam os poetas da terra firme. Estamos poraltu-
(,) Na giria de bordo t a noite em qtlt não compl'lt taur serviço dt ras de Vila do Conde. Daqui a duas horas vamos passar
quarto. ~m frente do Porto, a pouco mais de uma grande distôn-
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