Page 46 - Revista da Armada
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vel/cidos faziam uma patuscada.  O outro   -a com os delztese cortei as tranças da corda   Agarrei-me  à corda e icei-me à força de
            era uma simples luz /lO escuro, que indica-  umas atrás das outras até só reslarem duas.   pulso. Quando julguei que estava bastante
            va  a  posição do  navio ancorado.  Girara   Depois,  imóvel,  esperei que um sopro de   perlO,  ergui metade do corpo,  o  que era
            sobre a amarra com a maré baixa.  A proa   vento diminuísse outra vez a tellsão,  para   bastante arriscado; e pude assim ver o tec-
            estava  agora  virada  para  mim;  apenas  a   cortar as duas últimas.   to e uma parte da câmara.
            câmara  tinha luz,  e o  que eu  via  não era   Durame todo este tempo, ouvira baru-  Elllretalllo,  a escuna e o  seu pequeno
            mais do que os raios de luz que saíam da   lho de vozes vindas da câmara; mas a ver·   companheiro deslizavam bastO/lte depres-
            janela da popa, reflectidos na bruma.   dade é que estava tão absorvido por outras   sa sobre a água.  Na realidade tínhamos já
               A  maré já baixara um pouco e eu tive   preocupações,  que  mal prestei  atenção.   atingido as alll/ras da fogueira do acampa-
            que  patinhar uma boa  extellsão  de  areia   Contudo,  agora  que  já  não  tinha  mais   mento. O barco, como dizem os marinhei-
            molhada, onde me enterrei por várias ve-  nada que fazer, esculava com maior aten-  ros,  falava  alto  ao passar sobre as ondas
            zes acima do tornozelo, para chegar à bei-  ção.                     com  um  comímlO chapinhar; foi  preciso
            ra da água que se afastava.          Reconheci a voz de Israel Hands, o ho-  põr os olhos ao nível da janela para poder
               A vaI/cei  um  bocado  chafurdando,  e   mem do leme que tinha sido canhoneiro de   compreender por que razão 05 homens de
            pus com energia e cautela omeu coraele na   Flint.  O Oll/ro era,  bem ell/endido, o meu   quarto  não  se  tinham  preocupado  com
            água.                             amigo do barrete vermelho.  Era mais que   coisa nenhuma.  Todavia,  bastou-me lima
                                              certo que os dois marinheiros estavam em-  olhadela; e aliás não me atreveria a olhar
                                              briagados  e  continuavam  a  beber,  visto   duas vezes de demro daquela instável em-
                                              que, enquanto os escutava,  um deles, com   barcação.  Vi  Hands e o  companheiro en-
            A descida da maré                 uma praga  de  bêbado,  abriu a janela  da   volvidos num combate de morte, cada um
                                              popa e atirou qualquer coisa,  que eu per-  com a mão na garganta do oU/roo
               O  coraele,  COI/forme  tive  bastames   cebi ser uma garrafa vazia.  Mas Izão esta-
            ocasiões  de  ver  depois  de  o  II/ilizar,  era   vam apenas bêbados; estavam também fu-  Tomei a sentar-me no meu ba/lco de
            lima embarcação muito segura para lima   riosos.  As pragas  seglliam-se umas atrás   remar, e era mais que tempo, porque já es-
            pessoa  do  meu tamanho e do meu peso.   das  outras,  em  catadupa,  e,  de  vez  em   tava quase acima da amurada.  Ficara ob-
            De fácil  manejo,  aguentava  bem  o  mar;   qUO/ldo,  ouvia tais acessos  de cólera  que   cecado por aqueles dois rostos congestio-
            mas era  um barco llos mais aborrecidos,   era evidente que aqllilo ia acabar em zara-  nados pela  fúria,  oscilando jUlI/os sob o
            mal eqllilibrado e difícil de dominar.  Fos-  gata.  Mas de cada vez a discussão acalma-  candeeiro  fllmegante;  e  fechei  os  olhos
            se qual fosse a manobra que se fizesse, des-  va-se e as vozes baixavam de tom dl/rame   para os habituar de novo à escuridão.
            viava-se  cada  vez  mais,  e  girar  sobre  si   uns momentos, Olé nova explosão, que por   A  interminável  balada  parara  fínal-
            mesmo parecia ser o seu movimento prefe-                             menJe e, em volta da fogzleira do acampa-
            rido.  O  próprio  8en  Gunn  reconheceu   sua vez não conduzia a nada.   menJO,  o  que restava  dos piratas entoara
                                                 Na  margem,  podia  ver  O clarão  da
            que ele .. era  complicado de  manejar en-  grande  fogueira  do  acampamemo  espa-  em coro O refrão que eu ouvira /(III/as  ve-
            qual/to não se lhe conheciam os hábitos».                            zes:
                                               lhando calor por entre as árvores da beira-
               E  eu  desconhecia  comple/ameme  os   -mar.  Alguns canlavam uma velha canção   Quinze homens sobre o baú do
            seus hábitos! Voltava-se para todas as di-  de marinheiros, tris/e e monótona, baixan-         Imorto.
            recções,  excepto aquela que eu queria se-  do a voz e prolongando a nOla no fim de   16-h6-h6, e uma garrafa de
            guir; a maior parte do tempo estivemos de   cada estância. A canção parecia que s6 pa-     [aguardente!
             lado e eu nada teria conseguido sem a aju-  rava  quando o  cantor se cansava.  Eu  li-  o álcool e odiaboeoutros.
             da  da  maré.  Felizmente,  de qualquer for-  nha-a ouvido por mais de uma vez durante   I tinham marcado a sorte.
             ma que remasse,  a correme arrastava-me   a travessia e lembra va-me destes versos:   16-hó-h6, e uma garrafa de
             para o sul; e,  mesmo a meio do caminho,   S6 restava um de toda a                        (aguardente!
            difícil de evitar, estava o Hispaniola.                 [marinhagem     Pensava exactamellleem como o diabo
               Surgill primeiro na minha freme como   De sessenta e quatro que iam   e a bebida estavam agindo naquele preciso
             uma  massa  ainda  mais  escura  do  que a               Ina viagem   momemo na câmara do Hispaniola, quan-
             noite, depois os mastros e o casco começa-  e pensava que este refrão se podia aplicar   do fui surpreendido por uma súbita guina-
             ram a tomar forma e,  Izum insta/zte,  pare-  dolorosamente  a homens que tinham so-  da do corac1c, que deu I/In enorme Plllo e
             ceu-me  (porque  quanto  mais  avançava   frido tall/as perdas nessa mal/hã.  Mas na   pareceu mudar de direcção.  Neste imerva-
             mais semia a  maré),  encontrei-me ao al-  realidade, conforme o que vi,  todos aque-  lo  a  /lossa  velocidade  ti"ha  aumentado
             cance do cabo,  que agarrei imediatamen-  les  piratas  eram  tão  insensíveis  como °  consideravelmente.
             ".                                mar em que navegavam.                Abri imediatamente os olhos.  Estava
               ES/a amarra estava tão esticada como   A brisa veio finalmeme; deslocO/zdo-se   cercado de pequenas ondas que se quebra-
             a corda de um arco,  de tal forma o navio   de lado, a escuna aproximou-se de mim 110   vam com  um leve  ruído seco em espuma
             puxava a âncora.  Em toda a volta do cas-  escuro; senti novamente amolecer a amar-  quase fosforesceme.  O próprio Hispanio-
             co, na escuridão, o redemoinho da corren-  ra, e com 11m golpe cortei as últimas fibras.   la, fIO rasto do qual eu era ainda arrastado
             te  saltava  e fazia espuma como  uma tor-  A  brisa afectava pouco o coraele, e fi-  alguns metros,  pareceu cambalear na sua
             rente de momanha. Bastava cortara amar-  quei imediatameme encostado à popa do   rota, e vi os mastros oscilarem ligeiramen-
             ra,  e  o  Hispaniola  partia  imediatamente   Hispaniola.  Ao mesmo  tempo,  a  escuna   te "0 escuro da noite; e não só isso: olhan-
             com a maré.                       começou a  rodopiar sobre a quilha,  vol-  do melhor para ele,  tive a certeza de que
               Até Utllli  111'/"  '''11,'/11  /"''''.  """ ",.",_   tando-se devagar,  de  um extremo ao ou-  também virava para o sul.
             -me então à ideia que um cabo tenso, corta-  tro, nacorreme.           Olhei por cima do ombro, e semi o co-
             do de repeme, é tão puigoso como um ca-  Eu estava em palpos de  aranha,  por-  ração  aos  pulos.  A  luz  da  fogueira  do
             valo aos pinotes.  Podia apostar dez COf/lra   que esperava afundar-me de 11m momemo   acampamelllO  estava  ali,  justameme  lias
             um que se eu fosse tão imprudeme qlle cor-  para o outro; e na impossibilidade de fazer   minhas costas.  A  correme desviara-se em
             tasse a amarra do Hispaniola seria projec-  afastar  o  coraclc,  era  arrastado  para  a   ânglllo recto, arrastando consigo a grande
             tado nos ares mais o meu coraele.   popa.  Por  fim,  consegui  afaslar-me  da-  escuna  e  o  frágil  coraele;  acelerando-se
               Esta  ideia fez-me hesitar e,  se o acaso   quela vizinhança tão perigosa,  e,  quando   cada vez mais, levamando ondas cada vez
             não me ajudasse,  teria renunciado ao meu   mais uma  vez flli  bater no casco,  toquei   mais fortes,  fazendo cada vez mais baru-
             projecto.  Mas a brisa ligeira que se levan-  com as mãos num cabo que descia à popa,   lho,  deslizava a direito, saindo para o alto
             tara de sudeste virara para sudoeste depois   suspenso da amurada.  Imediatamente me   mar pela embocadura da enseada.
             de cair a noite.  Estava a reflectir,  quando   agarrei a ele.         De súbito, a escuna deu  uma violenta
             soprou uma rajada de ar que empurrou o   Nunca  saberei  dizer  porque  procedi   sacudidela diante de mim e descreveu UIII
             Hispaniola e o fez subir a corref/le;  com   desta forma.  Primeiro foi apenas por ins-  ângulo de Ims vime graus; quase ao mes-
             grande alegria, semi a amarra curvar-se, e   tinto; mas quando o agarrei e vi que era 56·   mo tempo, ouviram-se dois gritos a bordo;
             fiquei com a mão metida na áglla.   lido, deu-me a curiosidade e decidi esprei-  pude  Gllvir  passos  martelados  na  escada
                Decidi-me então a puxar da faca, abri-  tar pelajO/zela da câmara.   do passadiço; e compreendia que os dois

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