Page 196 - Revista da Armada
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naquela  confusilo  de  gentes  latinas  e   cima da sua cabeça, um boi espernean-  nas  frias  águas  da  Mancha  ou  da
            saxónicas.  comboiando  as  grandes   do  com  todas as suas quatro pemas, e   Biscaia.
            cidades flutuantes,  algumas  das  quais   via , também, a gaiU/a lnaculada defor~   O seu  olhar vagueara,  nessas oca-
            tinham  içado,  primitivamente,  a  ban-  ma  deplorável.           siOes  de perigo, por sobre a  superflcie
            deira  alemd,  e  nas  quais  o  exército   Regougou  um praguejar inglês que   estanhada de mar, perscrutando o galho
            heterogéneo em que havia de tudo,  e de   nós  ndo  quisemos  entender,  tdo  com-  denunciador de terrl~'el inimigo.
            todos,  até a/emdes - era transportado   promelidos ficámos  com  o  que,  sendo   Era mais uma vigia  que o  navio li-
            por  este  lado  M  AtUimico  e  vinha   absolutamente natural ejusrificado pelas   nha e quase todos o eram dentro desse
            ell/errar os pés,  também, para muitos,   circunstancias  momentdneas,  poderia   pequenino mundo /Ja~'Ol que foi,  duran-
            a vida, lias lamas colossais do noroeste   ser  considerado...  nem  eu  sei  como.   te a guerra,  o  "Pedro Nunes ...
            e norte da França.                   TennillOu o incidente, O «lollo,.,Joi   Nilo tinha o nosso «lodo .. entrada no
               Uma  vede/a de  WrI navio americano   para  o  seu  habitual  retiro  e  os  vários   confortável foyer das cólicas heróicas,
            estava,  riU/na  dessas trágicas conjuntu-  chefes de serviços ficarem sabendo que   como era chamado enlTe  nós,  habitan-
            ras  que  /amo  amarguravam  o  nosso   o IJavio  ia largar,  talvez,  nessa mesma   tes do navio,  a sala do fumo do  amigo
            «lodo .. ,  cochada  num  recarllo  das   noite,  o  mais  tardar  no  dia  seguinte.   paquete que fora,  em tempos idos, uma
            muralhas  do  velho porto comercial de   O «lodo» era o único chefe de sen'i-  prova de progresso, quando lIafrota da
            Brest.  imito dela,  sem  o[elldê-Ia,  sem   ço que sabia, com segurança, quando o   Mala Real Portuguesa ostental'a a ban-
            incomodá-la,  estava o arcabouço S!ljO,   navio  largava.           deira  nacional  por  esses  pontos  onde
            esverdeado,  acinzentado  do  ",Pedro   Julguei sempre justissima esta pra-  pulsam coraçfJes de  lusas  gentes.
            Nunes», sempre adonUldo a bombordo,   roga/im, pois impunham-se umas horas   O  cJOiJo»  ficava  fora,  junto  à
            como wn pilndego que recolhesse de uma   de meditaçdo bovldea, nas quais o espi-  amurada.
            noire  de  eSI/Í.rdia.            ri/o proteClOr do nosso «lodo,. se elJcon·   No foco das  cólicas que eram, por
              NJo havia,  na vedela, o mais ligei-  tral'a  com  o  do  seu  colega  Ápis  que,   forças  das  circwJSlâncias,  heróicas,
            ro sinal de vida.  Reluziam os amarelos,   tamas  vezes,  conduziram ao triunfo as  fical'Om,  estofados em cintos de possfl'el
            os coxins estavam imaculados, a embar-  hostes faraónicas.          salmçtlo os que niJo estavam de serviço.
            caçJo ar[ava/igeirame1lle, mas parecia   A bordo, nas horas angusliadas das   Uns,  animados de  um poliglotismo
            que  nela  ninguém  habjta~'a,    travessias, recebendo S. o. S. , todos, sem   mIlito louvável, esrudamJn inglês, OUlros
              Surgiu O nosso cJotlo», trazido pelo   excepçl1o, pensal'Om no poder sobrena-  laranchavam,  havendo,  alé,  quem  se
            seu  condU/ar,                    tIIral do «looo», que era um boi absolu-  lembrasse das madrinhas de guerra, dos
               O seu olhar fixou-se  no pimalgado   tamente natllral.           nobres santos da corte celestial e. prin-
            costado,  viu  um  cabo  pendurado,  na   Todos  o  rodeamm,  o  afogavam,   cipalmente, de que a  Humanidade  era,
            proa,  reconheceu  as dalas  escorrendo   todos falamm com ele.  Ele tido respon-  afinal, muito estúpida, gerando as guer-
            ~'erduras q!le pareciam  limos,  como se   dia, mas en/elidia o que lhe diziam, com-  ras que nos obrigm'Om àquele dispêndio
            o navio livesse vil/do do fundo do mar,   preendia a gravidade da sua siruaçao a   de  energia  bélica  que  nós  quedamos
            I1U,  nwn relance,  todo este quadro,  filO   bordo, conhecia as responsabilidades do   pintar cam cores vivas de um heroismo
            conhecido",  e parou assustado.   seu  cargo  e  procurava,  como  bom  e   estóico.
               Trabalhou  o pau  de  carga; foi-lhe   zeloso  funcionário,  corresponder  à   Lá fora,  porém,  estava  o  cJoilo .. ,
            passada a funda e o precioso e mascó-  confiança que o  Estado ponuguês nele   atento,  enxotando,  por Mbito  antigo,
            rico  corpo do  «lodo» foi  içado,  lema-  deposita\'O,  entregando--Ihe  a  defesa   com a sua CGl4da,  moscas que, naquelas
            mente,  pois  os  seus  amigos  da  proa   espiritual  dos  seres  humanos  que  o   paragens fugiam,  também,  dos  subma-
            gostavam de gozar o seu susto,  vendo-  ",Pedro Nunes» transponava, seres que,   rinos  e,  ponanto. somente  existiam  na
            -o,  no ar,  girando  como  um piilo,   tendo o espirita ligado ao corpo,  como   imaginaçl10  do  nosso  companheiro  de
              Na  vedeta americana ninguém assis-  é CoSlm/le mau da humanidade. estal'am   lides  bélico-nal'ais.
            tia a esta cena, ainda que fosse passada   arriscados a conhecer as profundezas do   Funivamente, a malta heróica VilJM
            afi,jwlIo dela,  e o «lodo» estivesse na   Atldmico ou as do mar da Mancha, mes-  ao  convés  e  olhal'a  para  o  «lodo,.  e,
            vertical da  reluzeme embarcaçdo,  sus-  mo sem  escafandro.        para  que negá-lo  - ficava,  espiritual-
            penso,  do pau  de  carga.           Heróica,  estoicamente,  cumpriu  o   mente,  confortada.
              A  I'ertical foi a desgraça que, feliz-  Kiol1o ..  o  seu  importante  serviço  de
            meme, IItlO  teve maiores consequências.   maSCOIe.
               t  diflcil CO/lIar o que sucedeu,  mas   Cumpriu-o  até  ao final  da guerra,   Pobre  «lodo,,!  Querido  compa-
            podemos imaginá-lo se nos lembrannos   pois, filJda  a  úllima  I'iagem,  antes  do   nheiro!
            que o nosso «loao» era um t(mido, ndo   annistfcio, o nosso bom «loi1o» entregou   A  sua morte ndo foi artistica,  reco-
            era  aI'iador,  mas apenas mascote que   a  sua  /(mpida  a/ma  semi-hw/lanLJ  ao   nheçamos.
            estal'lI na vertical (e  nunca a geometria   supremo animador deste /lasso plalleta.   Foi  a  única fase  da  sua  vida  que
            elementar esteve,  como nesta  ocasido,   Ficou, assim, plenamente confinna-  destruiu  a  han/lonia do conjunto.
            tlIo  comprometida illfemacionalmellle) e   da,  pelo  cumprimento  das  inexoráveis   O  cJoilo»  morreu  prosaicamente,
            estal'a,  finalmente,  comprimido  na   leis do Destino,  a  misstlo superior q!le   sem inspirar-se nos exemplos históricos
            fimda.                            o nosso «lodo» desempenhara a  bordo   dos que,  I'alendo muito menos que ele.
              Nós, os que, lIa amurada, assis/imos   do "Pedro Nunes ...        souberam deixar este mundo de  ilusOes
            à  erl/rada,  sempre  destriunfal,  do   Animou-nos a sua presença, enqufln-  com  uma maior dose de  arte.
            «10"0»,  \'imos,  de  repente,  surgir,  na   to os S. O.S.  nos apoquentavam,fazendo-  «.Iodo""  a mascou que, durante mais
            gaiura da casa do mOlOr da  vedeta uma   -lias  prever  uma  mone  rápida  ou  o   de um mIO,  animou  rodos  os que vive-
            cara de marujo americO/Jo que l'ia,  por   sofrimenlO  lento  de  morrer,  afogados,   ram 110 "Pedro Nunes»,  morreu em con·

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