Page 203 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (4)



                        Viagem até S Helena
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                         Viagem até S Helena
                                                                    ta.


               dia 8 de Julho de 1497 foi o dia da  Sal. O S. Rafael, o Bérrio, o navio de manti-
               partida para o sonho. Na visão dis-  mentos e a caravela de Bartolomeu Dias,
         Otante do porvir incerto se consubs-  que os acompanhava até à Mina, encon-
         tancia o imaginário do português emi-  traram-se por essa altura, mas o navio de
         grante que nos séculos seguintes se espa-  Vasco da Gama continuava desaparecido.
         lhou por toda a parte, levando a esperança  Só o avistaram três dias depois, quase à
         das Índias por descobrir e das riquezas por  chegada a Santiago. O Relato Anónimo (dito
         alcançar temperadas com as lágrimas da  de Álvaro Velho) diz "houvemos vista do
         saudade, cantada ao ritmo de fado, de  Capitão-mor, àvante de nós obra de cinco
         morna ou de qualquer outra melodia onde  léguas, e sobre a tarde nos viemos a falar
         não falte um tanger de cordas de guitarra,  com muita alegria, onde tirámos muitas
         de violão, de alaúde ou de cítara. O que  bombardas e tangemos trombetas e tudo
         levou os homens a partir assim da sua terra,  com muito prazer pelo termos achado."
         à procura de uma Índia a muitas vidas de  Parece evidente a alegria de que fala o autor,
         distância?… É verdade que vão com espe-  e revela, sobretudo, a angústia que já reina-
         rança de voltar para retomar, num patamar  va na esquadra, pela possibilidade de se ter
         superior, a vida interrompida abrupta-  perdido aquele navio. A 27 de Julho fun-
         mente. Terá sido esse o espírito dos homens  deiam em frente da praia de Santa Maria,
         que embarcaram sob o comando de Vasco  na ilha de Santiago, onde reabastecem de
         da Gama? Todos juntos seriam pouco mais  carne, água e lenha, aproveitando para
         do que a guarnição de uma corveta moder-  fazer reparações nas vergas. Partem uma
         na, e aí foram a caminho de terras desco-  semana depois, a 3 de Agosto, tomam a
         nhecidas sem fazerem uma ideia do que os  direcção leste (seguramente, por causa do
         esperava. Hoje, glorificamos estes tempos  vento), mas a 22 de Agosto iam "na volta
         idos como tendo sido a época de ouro de  do mar, ao sul e a quarta do sudoeste".  A derrota de Vasco da Gama, de Lisboa à
                                                                                          ta
         um Portugal que evocamos nostalgica-  Voltariam a encontrar terra a 4 de  baía de S Helena, marcada sobre um
         mente, como se o tivéssemos vivido num  Novembro, três meses depois de saírem de  mapa português (Cantino) de 1502.
         sonho qualquer. Como se tivéssemos  Santiago.
         saudades dele e o recordássemos num  O Almirante Gago Coutinho estudou esta
         mundo em que nos sentimos emigrantes  "volta do mar", tendo em conta o regime de
         vindos do passado, sempre à espera de  ventos do Atlântico e as possibilidades dos  E, sendo já Veloso em salvamento,
         voltar para casa. Cometemos dois erros  navios, chegando à conclusão de que a
         nesta forma de olhar os tempos de Vasco da  esquadra descreveu uma longa curva para  Logo nos recolhemos pera a armada,
         Gama: o primeiro resulta de que esses tem-  ocidente, quase até à costa brasileira, contor-  Vendo a malícia feia e rudo intento
         pos foram construídos, não apareceram do  nando os ventos alísios de Sueste  Da gente bestial, bruta e malvada,
         nada, nem foram o resultado de uma espera  (Hemisfério Sul) e apanhando depois os  De quem nenhum milhor conhecimento
         nostálgica; e o segundo é a facilidade com  Gerais do Oeste que permitiram demandar o
         que apenas vemos um grupo de homens  Cabo da Boa Esperança. A alegria dos mare-  Pudemos ter da Índia desejada
         aventureiros que foram à Índia, e esquece-  antes está expressa no Relato assim: "e então  Que estarmos inda muito longe dela.
         mos os momentos negros por eles passados.  nos juntámos todos e salvámos o Capitão-  E assim tornei a dar ao vento a vela.
         Também aqui nos limitamos ao proceder do  -mor com muitas bandeiras e estandartes e
         emigrante que recorda apenas o que lhe  bombardas, e todos vestidos de festa.". Não
         deixou saudades: os amigos, a família, as  fundearam imediatamente – talvez porque  Disse então a Veloso um companheiro,
         festas da aldeia e tudo o mais que são as  não houvesse condições – preferindo fazer  (Começando-se todos a sorrir):
         boas coisas, mas evita lembrar-se das razões  um bordo ao mar e outro a terra, avançando  - «Olá, Veloso amigo, aquele outeiro
         porque deixou esse mundo e foi à procura  um pouco para sul, até encontrar uma
         de novas terras e novas vidas.     pequena baía que foi sondada por Pero de  É milhor de decer, que de subir…»
           A esquadra de Vasco da Gama – como  Alenquer e onde Vasco da Gama decidiu  - «Si é, - responde o ousado aventureiro -
         acontecia, de uma forma geral, a todas as  ficar mais uma semana, para reabastecimen-  Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
         esquadras que deixavam Lisboa, em  to e reparações. Chamaram-lhe de Santa  Daqueles cães depressa um pouco vim,
         direcção à Guiné e à Mina – viveu o perma-  Helena e é ali que, no convívio com as
         nente sobressalto da incerteza e do impre-  populações locais e nos mal entendidos de  Por me lembrar que estáveis cá sem mim» -
         visto que, de um momento para o outro  duas línguas mutuamente desconhecidas,
         poderia trazer a morte e o fracasso. Ao cabo  viria a ocorrer o episódio de Fernão Veloso,  Lusíadas, Canto V
         de uma semana de viagem, os navios pas-  descrito com graça e picardia por Camões.
         saram pelas Canárias e seguiram para sul,  Já tinha sido vencido o Atlântico Sul, mas
         na direcção do arquipélago de Cabo Verde,  voltaremos a falar desta derrota.
         mas numa noite, a falta de visibilidade foi
         tal que se perderam uns dos outros, seguin-          J. Semedo de Matos
         do cada um por si, até avistarem a ilha do                    CTEN FZ
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • JUNHO 2000  21
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