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HISTÓRIAS DA BOTICA (2)
O casamento
O casamento
odos já ouviram falar de histórias saía nos portos e era alvo dos mais ini-
entre marinheiros e mulheres. Nes- magináveis gracejos por parte da ma-
T tas, os marinheiros são sempre rujada, aos quais correspondia com um
descritos como audazes conquistadores, meio sorriso assustado e triste. Não se
verdadeiros arrasa - corações, vivendo, lhe conheciam interesses especiais,
enfim, à altura do adágio popular que excepto um particular interesse pelo
lhes atribui “uma mulher em cada futebol, único assunto em que demons-
porto”...Na verdade, o confinamento trava alguma vivacidade. Para além
dos navios, a ausência da presença disto era delicado, de uma delicadeza
feminina (factor em correcção extrema e desconsertante, doentia.
recente) e a dureza das Recorria muitas vezes ao médico. Era
condições de mar e/ou do a “pintinha no braço”, a “dor no peito”,
serviço, podem despoletar a “impressão no pescoço” entre outras,
autênticas tempestades de que, depois de devidamente estudadas,
paixão, capazes, por exem- não consubstanciavam qualquer patolo-
plo, de causar atracções gia. Não era muito feliz, vivendo desen-
fortes, ao primeiro quadrado do convívio normal de bordo.
relance, por determi- Alguns aventavam mesmo uma hipótese,
nadas jovens que, ao 2º clara e dura, “é maricas!!”...Ao certo
dia de porto, parecem ninguém sabia. Nem era fácil ajudá-lo,
bem menos atraentes e pois fugia sempre a falar sobre o seu
mais necessitadas de um íntimo, continuando o rol habitual de
tratamento contra a obesi- queixas físicas e inconsequentes. Senti
dade. pena da solidão em que vivia.
Serve este intróito para rea- E lá foi navegando o fraca figura
firmar, sem culpa, que a vida sujeito às intempéries dos camaradas,
do mar é dura e fomenta num isolamento preocupante, até que
paixões. Este fenómeno – um dia, durante uma estadia numa
incompreensível para os não cidade da América do Sul, se soube de
marinheiros - será, disso estou um acontecimento surpreendente...O
certo, alvo de uma tese de fraca figura tinha sido visto com uma
doutoramento, numa qualquer bela mulher. Seria verdade, seria menti-
escola médica de renome, que ra...muitos não acreditavam. Quase
suportará a explicação científica todos, eu incluído, como São Tomé,
do fenómeno. Estas ligações são, queríamos ver para crer...
quase sempre passageiras, como Finalmente, fiquei a saber, o fraca
a forte nortada ao anoitecer, con- figura foi pedir conselho ao enfermeiro
denada pela acalmia da manhã de bordo – queria casar com a bela
seguinte... “Conchita”, que tinha conhecido. Afinal
era a sério, havia paixão, energia e von-
A história que vos trago, não é tade naquele espírito. Acabou por vir
daqueles ousados homens do mar, falar comigo sobre o assunto. Queria
atrás descritos. Venho falar, isso que a rapariga fosse viver para Portugal,
sim, de um tímido e discreto ma- queria constituir família...
rinheiro, que há não muito tempo Disse-lhe para ir devagar, já tinha
conheci. Era um rapaz baixo, es- visto naquele porto, de belas mulheres,
guio, de uma brancura extrema muita paixão determinada pela necessi-
(quase anémica), acentuada por dade - num país em que até o salário do
cabelo e olhos negros sem brilho. marinheiro português era elevado.
Falava devagar, como se pedisse Achei, também, estranha esta súbita
desculpa por tudo o que fosse obsessão pelo casamento.
dizer. Quando o vi pela primeira
vez, lembrei a frase que a minha Sendo eu, como é habitual a bordo,
avó emprestava a alguns homens e meio médico, meio padre, ele decidiu
lhe assentava como uma luva trazer-ma para averiguar das intenções
“era um homem de dela. “Conchita” era verdadeiramente
fraca figura”. Não bela, de uma beleza simples, caracterís-
30 NOVEMBRO 2000 • REVISTA DA ARMADA