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A MARINHA DE D. MANUEL (32)
O Governo da Índia
O Governo da Índia
e as relações com o reino
e as relações com o reino
uando D. Manuel entregou a Uma das questões constantes no Regi- disso, escreve-lhe outra em Janeiro/Feve-
D. Francisco de Almeida um por- mento diz respeito à repartição de despojos reiro de 1506 (onde fala na possibilidade de
Qmenorizado Regimento para a de guerras e corso, que o rei faz questão de ter um estaleiro na Índia, desde que lhe
acção que deveria levar a cabo durante os que todos tirem lucro, apesar de referir que enviem calafates e carpinteiros) e outra em
três anos que iria permanecer na Índia, não seria necessário permiti-lo, porque todos Dezembro desse mesmo ano. Entretanto,
procurava comandar a partir de Lisboa vão com o respectivo soldo. Essas presas antes dessas cartas chegarem a Lisboa, o rei
uma política que tinha lugar à distância de eram divididas, contanto que um quinto do faz chegar à Índia instruções concretas sobre
seis meses de viagem e cujas informações seu valor seria retirado para o rei e o restante a necessidade de ir tão rápido quanto pos-
lhe chegariam com igual desfasamento. É dividido em três partes iguais. Dessas três sível para Malaca, conquistá-la e aí cons-
evidente que, quando se intitulava “senhor partes, duas seriam igualmente para o rei, truir uma fortaleza, que deveria ficar
da conquista navegação e comércio da para pagamento da armação dos navios, das reforçada por uma pequena armada (no
Etiópia, Arábia, Pérsia e fim de contas para afirmar
Índia”, tinha em mente o poder naval português no
exercer um controlo directo estreito de Malaca, que já se
sobre esses privilégios, de percebia ser a chave do
acordo com o conceito de comércio com o Extremo
poder que era próprio da- Oriente). Explicava o rei a
quele tempo. Tinha todavia D. Francisco de Almeida
a noção que havia decisões que em Castela se tinham
que só seriam possíveis de apercebido da importância
tomar em face dos aconteci- da cidade, e, contestando
mentos no local e – mesmo que estaria dentro do hemis-
que isso o contrariasse ou fério de influência portugue-
assustasse – o Regimento sa definido em Tordesilhas,
dado, salvaguardava sem- iam organizar uma expe-
pre que as determinações dição para tomar posse dela.
poderiam ser alteradas se o Dizia D. Manuel que antes
responsável nomeado (nes- de qualquer definição do
te caso D. Francisco de Al- problema, melhor seria que
meida), achasse que assim ali chegassem os portugue-
deveria ser feito, para ser- ses e construíssem a sua
viço de el-Rei (e ressalve-se A Armada de D. Francisco de Almeida (1505). fortaleza. Era uma situação
sempre este último aspecto delicada. Provavelmente
que é importante). Todavia é interessante despesas com o pessoal e da artilharia, e a ter- aquela que mais preocupava o soberano
observar como a distância física e a falta de ceira seria dividida pelo pessoal da seguinte português, alheio a outros problemas que
contacto directo com as situações permiti- forma: 25 partes para o Capitão-mor (se tinha iam acontecendo no Índico. Por outro lado,
am que a intriga provocasse más interpre- estado presente na contenda), 10 partes para o Vice-Rei não tinha gente para acorrer a
tações e criasse uma tensão permanente, os capitães dos navios de alto bordo ou das tanta fortaleza que lhe diziam para fazer,
caracterizada por uma certa ansiedade do galés, 6 partes para os das caravelas (o não tinha navios para todas as missões, e,
rei, ao pôr em causa que estava a ser feito o mesmo que deveria ser reservado para Nossa sobretudo, não tinha maneira de fazer
que era de seu serviço, e uma angústia per- Senhora de Belém), 4 para os que eram chegar a Lisboa, em tempo útil, as razões do
manente do governador ou vice-rei, que simultaneamente mestres e pilotos, e assim que ia decidindo. Em Abril de 1507, o rei
vivia a tentar explicar tudo o que fazia e a sucessivamente até aos grumetes que recebi- manda uma carta para a Índia que é um rol
boa vontade que punha nas suas acções. Eu am uma parte. Ora, como é fácil de entender, de inquirições em tom pesado e azedo
julgo que o que consta no Regimento de estes saques eram passíveis de muitas sobre a actividade de D. Francisco de
1505 e na correspondência trocada entre manobras ou supostas manobras que, natu- Almeida, tratando-o como se ele tivesse
D. Francisco de Almeida e D. Manuel, até ralmente, geravam intrigas, ódios e queixas descuidado toda a sua missão, num des-
1508, são um exemplo nítido deste tipo de justas e injustas ao rei. A par com os diversos governo completo, ignorando o que era seu
problemas, transparecendo essencialmente negócios, que também deviam ser controla- serviço. Uma carta globalmente injusta que
a insegurança de um e de outro na relação dos pelo vice-rei através dos seus feitores e deve ter caído sobre o Vice-Rei como um
estabelecida: o rei sente-se mal por não con- escrivães, este era um foco permanente de balde de água fria. O veneno estava lançado
trolar a Índia como controla o país; e o vice- conflitos internos. Mas – à parte disto – exis- e as explicações de pouco valeriam. O
-rei vive na incerteza dos julgamentos reais, tiam ainda questões de natureza política e homem que lançara as bases do Estado
ciente de que a sua acção na Índia gera intri- militar que facilmente motivavam o soberano Português da Índia veria a sua carreira
gas em Lisboa. É um problema insolúvel, para desconfiar do governo da Índia. numa descendente vertiginosa para um
que terá continuidade nas décadas seguin- D. Francisco de Almeida escreve uma final inglório que não deixará de ter os seus
tes e por outros reinados. Salientemos ape- carta a D. Manuel em Dezembro de 1505, episódios trágicos, como viremos a relatar.
nas alguns dos seus aspectos, daqueles que dando-lhe conta de como correu a viagem e
estão relacionados com o próprio governo dizendo-lhe que decidira não enviar, nesse J. Semedo de Matos
do Império do Índico. ano, a expedição ao Mar Vermelho. Depois CFR FZ
REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2003 17