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A MARINHA DE D. MANUEL (47)



           Duarte Galvão e a visão mística do Império
           Duarte Galvão e a visão mística do Império



              stamos ainda recordados de que quan-  uma predestinação divina que o encaminhava  ao Mar Vermelho, tão breve quanto possível,
              do os primeiros homens da esquadra  para ser o braço destruidor do Islão. Um indí-  para que alcançasse a corte do Preste João. Já
         Ede Vasco da Gama desembarcaram em  cio evidente desta dupla faceta do poder régio  se sabia-se em Lisboa que a Etiópia era gover-
         Calecut, no ano de 1498, inquiridos que foram  está patente na organização da embaixada que  nada pela rainha regente Helena, que por al-
         sobre o que vinham fazer, responderam que  (finalmente) sai de Lisboa preparada para se  turas de 1508 recebera dois ou três emissários
         “vinham buscar cristãos e especiarias” (Ma-  apresentar na corte do Preste João, com um  de D. Manuel e que enviara à Índia o seu em-
         rinha de D. Manuel (8)). Depois des-                                        baixador Mateus, que se apresentou
         ta ingenuidade de primeiro contacto                                         em Goa em 1512, pedindo que o le-
         – associada à convicção da existência                                       vassem a Lisboa porque tinha cartas
         de uma forte comunidade dos chama-                                          para o rei de Portugal (e uma relíquia
         dos “cristãos de S. Tomé” e a lendária                                      que era um pedaço do santo lenho).
         existência do Preste João da Abissínia                                      A presença de Mateus levantou sem-
         – D. Manuel determinou algumas ini-                                         pre muitos problemas e foi aprovei-
         ciativas concretas para uma aproxima-                                       tada até pelos inimigos de Albuquer-
         ção ao soberano abissínio, mas (como                                        que que o acusaram de ser um espião
         não me cansei de dizer) esses esforços                                      mouro, mas ele acabaria por chegar
         foram sempre insípidos e, sobretudo,                                        a Lisboa em 1514, e foi recebido pelo
         turvados por outros desígnios que se                                        rei de Portugal que leu atentamente a
         impunham no Oriente. Mas, depois                                            carta do Preste João (da rainha regen-
         de termos passado em revista alguns                                         te) e com ela se entusiasmou. O seu re-
         pormenores do que foi um verda-                                             gresso à Índia far-se-ia na esquadra de
         deiro plano imperial levado a cabo                                          Lopo Soares, integrando a comitiva de
         por Albuquerque no Oceano Índico,                                           Duarte Galvão que deveria constituir
         cumpre dizer que este tipo de pro-                                          a embaixada já referida. Mas Duar te
         jectos não podem subsistir sem uma                                          Galvão também se desentendeu com
         força anímica que, em todos os exem-                                        Mateus e esse desentendimento seria
         plos que a História nos proporciona,                                        um pretexto que levou o Governador
         teve um fundo religioso. Apesar das                                         a não os transportar ao Mar Vermelho
         gentes que viajavam até à Índia es-                                         no ano de 1516 – como estaria previs-
         quecerem nas tormentas da viagem                                            to – mas em 1517. Deve dizer -se, ali-
         a sublime missão religiosa lusitana,                                        ás, que Duarte Galvão se desentendia
         encarada como um desígnio histó-                                            muito facilmente com toda a gente. Os
         rico de origem divina, essa ideia era                                       documentos que falam da sua passa-
         divulgada em Lisboa e, diga-se em                                           gem pela Índia, apontam-no como
         abono da verdade, também chegou                                             uma figura de semblante e discurso
         ao Malabar e acompanhou muitos   Governador Lopo Soares de Albergaria 1515-1518.  proféticos ao ponto de suscitar o ridí-
         portugueses que se dispuseram a di-  Livro de Lisuarte de Abreu – 1558.     culo público, fazendo valer a sua pro-
         versas missões cujo lucro seria duvi-                                       vecta idade e, seguramente, a crença
         doso. Mas importa agora recordar esta questão  projecto de aliança que visava uma acção mi-  de que as suas palavras tinham um especial
         porque nos números anteriores ficou a pairar  litar concertada, no Mar Vermelho, até à com-  eco junto do rei. Não se apercebeu, pela certa,
         a ideia de que a substituição de Albuquerque  pleta destruição de Meca e de tudo quanto  de que o próprio rei tinha um ouvido para o
         por Lopo Soares de Albergaria se devia (e pa-  representasse o poder muçulmano. Esta em-  que dizia e outro para quem lhe falava de pi-
         rece ser um facto) à influência de um “partido”  baixada vai chefiada por Duarte Galvão, figura  menta e ouro. Permaneceu como uma figura
         encabeçado pelo Barão do Alvito (vedor da fa-  de grande prestígio na corte, que já servira sob  deslocada e algo louca, apanhada pela contra-
         zenda real) que, muito mais do que impérios,  as ordens de D. Afonso V e D. João II, e que,  dição entre o discurso místico oficial, próprio
         queria negócios. Todavia, a figura do rei, quer  com a sua pena ligeira (embora muito critica-  de certos ambientes europeus, e a prática cor-
         pela natureza do seu poder, quer pela origem  da e nunca reconhecida pelos humanistas), já  rente de quem ia à Índia. No princípio do ano
         das suas riquezas, é transversal a estes dois in-  fora o obreiro da versão messiânica e proféti-  de 1517, Lopo Soares organiza uma expedi-
         teresses. Na sua pessoa eles não são contradi-  ca que acompanhava a monarquia portugue-  ção ao Mar Vermelho, com intuito prioritário
         tórios mas complementares. E se os negócios  sa desde o reinado de D. Afonso Henriques.  de destruir uma nova esquadra de rumes que
         são essenciais à subsistência de um fausto e de  A sua expressão mais óbvia corporizava-se no  está em construção em Suez. Não consegue ir
         um empenho militar ultramarino que se tor-  milagre de Ourique, quando Cristo aparecera  além de Djedá – que não ataca – e regressa à
         nara muito dispendioso, a imagem de poder  ao primeiro rei de Portugal antes da batalha.  ilha de Kamaran onde Duarte Galvão encon-
         é suficiente forte para alimentar a prestigio-  Quero com isto dizer que a cedência de D. Ma-  tra a morte, por entre murmúrios desespera-
         sa ideia de um império sem limites. O que  nuel era apenas parcial ou, até, circunstancial,  dos a pedir que o desembarquem para ir em
         quer isto dizer?... quer dizer que a cedência  esperando apenas por melhor altura para ca-  busca do Preste João. Mas à Abissínia só che-
         de D. Manuel aos homens de negócios não  lar aqueles que apenas pretendiam chegar ao  gará uma representação oficial em 1521, como
         apagou a simpatia que nutria pelo projecto de  comércio das especiarias e viam tudo o resto  ainda falaremos.
         Albuquerque (e isso viu-se nas hesitações que  como despesas perdulárias.                             Z
         teve, mesmo depois de ter nomeado Lopo Soa-  Lopo Soares de Albergaria tinha, portanto,   J. Semedo de Matos
         res), nem afastou os sonhos e as convicções de  como missão predefinida levar esta embaixada       CFR FZ

         10  MAIO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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