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HISTÓRIAS DA BOTICA (48)



                     Um acidente na estrada...
                     Um acidente na estrada...


              i um acidente na estrada. Uma senho-  prevenir lesões da coluna) e disse-lhe que ia  a mão. Partimos, finalmente, os dois….
              ra foi colhida no passeio por um carro  fazer um torniquete para limitar a hemorra-  Nesse dia meditei sobre estes aconteci-
         Vque, em alta velocidade, ultrapassou  gia. Sem que eu lhe pedisse despiu e rasgou  mentos. Os primeiros foram as condições do
         outro pela direita. Na confusão gerada, um  a sua própria camisa, atirando-me com um:  acidente. Que me corrijam se estiver erra-
         homem idoso esbracejava angustiado, en-  “sabe fazer, ou quer que eu tente?”  do, mas nós os portugueses damos cada vez
         quanto, perto da acidentada, os paralelepí-  Disse-lhe que sabia e apertei a perna acima  mais provas de selvajaria ao volante. Apesar
         pedos da calçada se avermelhavam…O autor  da lesão. Entretanto percebi que ninguém ti-  de no nosso rectângulo à beira-mar o código
         do atropelamento nem sequer parou. Muitos  nha ligado para a emergência. Pedi-lhe para  da estrada ser dos mais rígidos no mundo, a
         atrás de mim apitavam sem parar, não perce-  fazer isso. O velhote, emocionado, desmaiou  verdade é que nada se cumpre. Como sabe-
         bendo o que se tinha passado. Por um mo-  e cairia desamparado não fora o presto apoio  mos todos, só os lorpas respeitam limites de
         mento ocorreu-me que o Inferno não poderia  do jovem. À nossa volta um magote de curio-  velocidade, prioridades e outros arcaísmos,
         ser mais desumano ou caótico…      sos, inactivos, espreitava e dava conselhos, a  eivados de respeito mútuo, que uns quantos
           Parei e encostei o carro fora do caminho  maior parte destes de uma tontaria inaudi-  dinossauros estúpidos tentam defender…Na
         da multidão de “orçamentistas” – termo que  ta…Ali ficámos durante cerca de 20 minutos  verdade o código da estrada devia ser suma-
         gosto particularmente e que se aplica a todos  tendo eu aliviado o torniquete algumas vezes,  riado por tês regras simples (essas sim já hoje
         aqueles, que sem saírem do seu automóvel,  para permitir a irrigação transitória do mem-  escrupulosamente cumpridas):
         abrandam demoradamente para observar a  bro ferido, limitando, contudo, a hemorragia.   Artigo 1: PRIMEIRO EU
         desgraça dos outros – entretanto vi um ho-  Chegou finalmente a ambulância. Trazia um   Artigo 2: SALVE-SE QUEM PUDER
         mem novo, não me pareceu ter mais de 20  médico e o jovem percebeu pela linguagem   Artigo 3: CUMPRES – ÉS BURRO
         anos, a dirigir-se para a vítima. Despachado  usada que eu era médico também. A ambu-  Se este código fosse lei escrita em vez de
         e ágil chegou à acidentada alguns segundos  lância levou os dois infelizes transeuntes: o  lei cumprida, deixaríamos de achar estra-
         antes de mim. Esta, uma mulher de meia-ida-  pai inanimado, mas a respirar e com pulso  nho que nos queiram abalroar, numa ânsia
         de, tinha agora a perna esquerda envolvida  e a filha com uma perna em mau estado,  abrupta de passar, quando já vamos à ve-
         numa volumosa poça de sangue. O idoso  mas viva…                      locidade máxima permitida. Deixaríamos,
         - mais tarde vim a saber, era pai da senhora   Estava cansado e sentei-me esperando que  também, de considerar estranho, que ape-
         acidentada - chorava copiosamente. O jovem,  todos os curiosos partissem. Reparei que o jo-  sar de estarmos com prioridade, ninguém
         sempre solícito, enquanto o tentava acalmar,  vem também tinha ficado para trás. Estava de  nos deixa passar, porque não gostamos de
         rasgou as calças da senhora, que jazia inerte.  tronco nu. Tinha parte do antebraço e tórax  atirar o nosso carro para cima dos outros,
         Foi nesse momento que decidi intervir. Ha-  ensanguentados. Ofereci-me para lhe empres-  que esperamos tenham civilidade. Compre-
         via uma fractura exposta. A senhora tinha um  tar roupa e o levar a casa. Disse-me que não  enderíamos, por fim, porque é que o carro
         pulso débil e taquicardíaco, de acordo com  valia a pena. Tinha o carro perto e roupa no  atrás de nós nos apita se paramos para deixar
         a hemorragia da perna, por onde se lhe es-  Alfeite (estávamos perto), era fuzileiro, afir-  passar alguém na passadeira – já se vê, ele
         vaía a vida. Pedi ao jovem que me ajudasse  mou decidido e com orgulho. Disse-lhe então  tem pressa e quem cumpre é, evidentemente,
         a endireitar a senhora a um só tempo (para  que era, eu também, da Marinha. Apertei-lhe  burro…O que me atordoa verdadeiramente
                                                                                            é que, provavelmente, a
                                                                                            condução é o reflexo do
                                                                                            nível moral (e porque não
                                                                                            dizê-lo também) e cultural
                                                                                            da maioria de nós. Far-se-
                                                                                            -ia, por maioria de razão,
                                                                                            um grande bem à nação se
                                                                                            adoptássemos aqueles três
                                                                                            artigos, para substituir uma
                                                                                            coisa maçadora, que os
                                                                                            políticos teimam em crer
                                                                                            reformar, mas que na rea-
                                                                                            lidade também não se leva
                                                                                            a sério: a Constituição…
                                                                                            Tudo faria sentido e até o
                                                                                            nível cultural e a mensa-
                                                                                            gem das nossas televisões
                                                                                            estaria, no geral, de acordo
                                                                                            com aquelas três, peque-
                                                                                            ninas mas fortes, regras de
                                                                                            ouro. Outras vantagens se
                                                                                            seguiriam: não estranharía-
                                                                                            mos os negócios do futebol
                                                                                            e, não menos importante, a
                                                                                            situação económica apon-
                                                                                            taria finalmente na direc-
                                                                                            ção certa – alguns cada vez
                                                                                            mais ricos e a maioria cada

         30  NOVEMBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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