Page 356 - Revista da Armada
P. 356
HISTÓRIAS DA BOTICA (48)
Um acidente na estrada...
Um acidente na estrada...
i um acidente na estrada. Uma senho- prevenir lesões da coluna) e disse-lhe que ia a mão. Partimos, finalmente, os dois….
ra foi colhida no passeio por um carro fazer um torniquete para limitar a hemorra- Nesse dia meditei sobre estes aconteci-
Vque, em alta velocidade, ultrapassou gia. Sem que eu lhe pedisse despiu e rasgou mentos. Os primeiros foram as condições do
outro pela direita. Na confusão gerada, um a sua própria camisa, atirando-me com um: acidente. Que me corrijam se estiver erra-
homem idoso esbracejava angustiado, en- “sabe fazer, ou quer que eu tente?” do, mas nós os portugueses damos cada vez
quanto, perto da acidentada, os paralelepí- Disse-lhe que sabia e apertei a perna acima mais provas de selvajaria ao volante. Apesar
pedos da calçada se avermelhavam…O autor da lesão. Entretanto percebi que ninguém ti- de no nosso rectângulo à beira-mar o código
do atropelamento nem sequer parou. Muitos nha ligado para a emergência. Pedi-lhe para da estrada ser dos mais rígidos no mundo, a
atrás de mim apitavam sem parar, não perce- fazer isso. O velhote, emocionado, desmaiou verdade é que nada se cumpre. Como sabe-
bendo o que se tinha passado. Por um mo- e cairia desamparado não fora o presto apoio mos todos, só os lorpas respeitam limites de
mento ocorreu-me que o Inferno não poderia do jovem. À nossa volta um magote de curio- velocidade, prioridades e outros arcaísmos,
ser mais desumano ou caótico… sos, inactivos, espreitava e dava conselhos, a eivados de respeito mútuo, que uns quantos
Parei e encostei o carro fora do caminho maior parte destes de uma tontaria inaudi- dinossauros estúpidos tentam defender…Na
da multidão de “orçamentistas” – termo que ta…Ali ficámos durante cerca de 20 minutos verdade o código da estrada devia ser suma-
gosto particularmente e que se aplica a todos tendo eu aliviado o torniquete algumas vezes, riado por tês regras simples (essas sim já hoje
aqueles, que sem saírem do seu automóvel, para permitir a irrigação transitória do mem- escrupulosamente cumpridas):
abrandam demoradamente para observar a bro ferido, limitando, contudo, a hemorragia. Artigo 1: PRIMEIRO EU
desgraça dos outros – entretanto vi um ho- Chegou finalmente a ambulância. Trazia um Artigo 2: SALVE-SE QUEM PUDER
mem novo, não me pareceu ter mais de 20 médico e o jovem percebeu pela linguagem Artigo 3: CUMPRES – ÉS BURRO
anos, a dirigir-se para a vítima. Despachado usada que eu era médico também. A ambu- Se este código fosse lei escrita em vez de
e ágil chegou à acidentada alguns segundos lância levou os dois infelizes transeuntes: o lei cumprida, deixaríamos de achar estra-
antes de mim. Esta, uma mulher de meia-ida- pai inanimado, mas a respirar e com pulso nho que nos queiram abalroar, numa ânsia
de, tinha agora a perna esquerda envolvida e a filha com uma perna em mau estado, abrupta de passar, quando já vamos à ve-
numa volumosa poça de sangue. O idoso mas viva… locidade máxima permitida. Deixaríamos,
- mais tarde vim a saber, era pai da senhora Estava cansado e sentei-me esperando que também, de considerar estranho, que ape-
acidentada - chorava copiosamente. O jovem, todos os curiosos partissem. Reparei que o jo- sar de estarmos com prioridade, ninguém
sempre solícito, enquanto o tentava acalmar, vem também tinha ficado para trás. Estava de nos deixa passar, porque não gostamos de
rasgou as calças da senhora, que jazia inerte. tronco nu. Tinha parte do antebraço e tórax atirar o nosso carro para cima dos outros,
Foi nesse momento que decidi intervir. Ha- ensanguentados. Ofereci-me para lhe empres- que esperamos tenham civilidade. Compre-
via uma fractura exposta. A senhora tinha um tar roupa e o levar a casa. Disse-me que não enderíamos, por fim, porque é que o carro
pulso débil e taquicardíaco, de acordo com valia a pena. Tinha o carro perto e roupa no atrás de nós nos apita se paramos para deixar
a hemorragia da perna, por onde se lhe es- Alfeite (estávamos perto), era fuzileiro, afir- passar alguém na passadeira – já se vê, ele
vaía a vida. Pedi ao jovem que me ajudasse mou decidido e com orgulho. Disse-lhe então tem pressa e quem cumpre é, evidentemente,
a endireitar a senhora a um só tempo (para que era, eu também, da Marinha. Apertei-lhe burro…O que me atordoa verdadeiramente
é que, provavelmente, a
condução é o reflexo do
nível moral (e porque não
dizê-lo também) e cultural
da maioria de nós. Far-se-
-ia, por maioria de razão,
um grande bem à nação se
adoptássemos aqueles três
artigos, para substituir uma
coisa maçadora, que os
políticos teimam em crer
reformar, mas que na rea-
lidade também não se leva
a sério: a Constituição…
Tudo faria sentido e até o
nível cultural e a mensa-
gem das nossas televisões
estaria, no geral, de acordo
com aquelas três, peque-
ninas mas fortes, regras de
ouro. Outras vantagens se
seguiriam: não estranharía-
mos os negócios do futebol
e, não menos importante, a
situação económica apon-
taria finalmente na direc-
ção certa – alguns cada vez
mais ricos e a maioria cada
30 NOVEMBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA