Page 383 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (18)



               O Primeiro Cerco de Diu (1538)
                O Primeiro Cerco de Diu (1538)

         O                                    O rei de Cambaia, que ficou a residir na  dido de ajuda ao Cairo. Segundo as mesmas,
               rei de Cambaia, Bahadur, na fase
               mais aguda do seu conflito com os  povoação de mouros perto da ponta de Diu,  toda esta trama teria sido revelada por Coje
               mogoles (mogores) imaginou que  via crescer a fortaleza portuguesa com um  Çafar, um veneziano convertido ao islão que
         conseguiria negociar o apoio dos portugue-  contido aperto na alma, e, sobretudo, doía-  o servia, e foi preso nesse mesmo dia. Foi ele
         ses nessa guerra, e propôs a Nuno da Cunha  -lhe que da parte portuguesa não lhe fosse  que foi mostrar as velhas cisternas e subter-
         ceder-lhe Baçaim, onde pudesse construir  dado o auxílio que pedira para combater os  râneos onde se acumulavam espingardas e
         uma fortaleza. Lembremo-nos que                                             pólvora, merecendo a confiança do
         esse local tinha sido atacado e arra-                                       governador que o nomeou capitão da
         sado em 1533, sem que fosse possí-                                          vila (dos Rumes, como era chamada).
         vel guarnecê-lo, mas era uma das                                            Por pouco tempo duraria esta sua
         posições estratégicas importantes                                           fidelidade aos portugueses, porque
         no controlo do acesso ao golfo. Con-                                        em 1538, voltou a fugir para se jun-
         tudo, o governador pôs condições                                            tar às tropas do novo rei de Cambaia
         para este acordo: uma delas era a de                                        que viriam atacar Diu, ajudadas pe-
         que as naus que habitualmente iam                                           los turcos do Cairo comandados por
         a Diu, passassem a ir a Baçaim para                                         Suleimão Baxá.
         que pagassem o respectivo tributo; e                                         Por toda a Índia se soube que uma
         outra era que, de imediato fossem li-                                       esquadra imensa se preparava para
         bertados os cativos portugueses, que                                        atacar os portugueses, e as notícias
         detinha desde o início dos conflitos.                                        correram também o Mediterrâneo
         Aparentemente, nenhuma das con-                                             chegando à corte de D. João III. Em
         dições portuguesas foi inicialmente                                         Diu, entretanto, António da Silveira
         aceite, mas a pressão da guerra e, so-                                      preparava-se para a defesa, com os
         bretudo, as traições de que foi vítima,                                     escassos meios disponíveis, enquan-
         levaram a que Bahadur acabasse por                                          to em Goa, Nuno da Cunha procu-
         fugir para Diu, com intenções de se                                         rava, também, reunir uma esquadra
         refugiar em Meca, oferecendo esta                                           para o efeito. Preparava-se, talvez,
         posição aos portugueses, como for-                                          para o combate de Diu que nunca
         ma de garantir a sua própria sobre-                                         conseguira travar e que fora incum-
         vivência, em termos imediatos.                                              bência do seu rei, e que mais uma vez
           A notícia chegou ao governador                                            lhe fugiria, agora porque chegava a
         pela mão de Diogo Pimentel, um                                              D. Garcia de Noronha provido no
         dos portugueses cativos do rei de                                           cargo de Vice Rei da Índia. A 27 de
         Cambaia, agora solto em sinal de                                            Setembro chegavam 85 velas turcas,
         boa vontade. Acontece, no entanto,                                          com 6000 homens de guerra e 10000
         que Pimentel passou por Chaul onde                                          remeiros e marinheiros. O primeiro
         se encontrava a armada de Martim                                            baluarte a cair foi o de Francisco Pa-
         Afonso de Sousa, dando-lhe con-  Memória das Armadas – Armada de 1538.      checo que, já preso, escrevia ao capi-
         ta do que sucedera, e da aflição em que se  mogoles. As relações entre ele e os portugue-  tão com as propostas de rendição que ouvi-
         encontrava o rei, explicando-lhe a urgência  ses degradavam-se com a mesma velocida-  ra: embarcados e levados a Goa, em troca de
         de acorrer a Diu. Era uma situação que caía  de com que lhe iam chegando boas notícias  Diu. Mas a resposta de António Silveira não
         como ouro sobre azul, porque lhe permitia  do seu reino, entrevendo a possibilidade de  deu margem para dúvidas: lutarão enquanto
         avançar para o local, antes mesmo do gover-  quebrar, ele próprio, a aliança com os por-  houver homem vivo ou pedra para defender.
         nador. Sabemos bem que ele contava suce-  tugueses, parecendo-lhe que já não necessi-  E foram quase dois meses de combate desi-
         der a Nuno da Cunha no governo da Índia,  tava dela. Acontece que a desconfiança era  gual e sem tréguas, até à retirada dos inimi-
         e que lhe desagradava particularmente ser-  mútua, e Nuno da Cunha, via nele uma per-  gos. Quis o destino que os combates acabas-
         vir sobre as suas ordens. Apesar de ter sido  manente ameaça. Os relatos que temos dos  sem por cessar por um estratagema de Coje
         desaconselhado por diversos fidalgos do seu  acontecimentos que se seguiram são con-  Çafar, a quem aqueles dois meses de aliança
         séquito, decidiu partir e chegou de facto, a  fusos em muitos aspectos, mas tudo leva a  turca fizeram perceber que, para Cambaia,
         tempo de receber ele próprio a incumbência  crer que houve uma intenção do governador  era preferível Diu ficar nas mãos dos portu-
         de marcar o lugar da futura fortaleza de Diu.  em prender o rei e trazê-lo para Goa. Acon-  gueses do cair sob a alçada dos turcos. Foi ele
         Conseguiu ainda que o rei mandasse uma  tece, no entanto que, em Dezembro de 1536,  que forjou uma notícia falsa da aproximação
         carta a D. João III, que fez acompanhar de  quando se dispôs a isso, fê-lo de forma pre-  eminente da esquadra de reforço enviada
         outras escritas por si, dando conta do suces-  cipitada e indecisa, acabando por provocar  por Garcia de Noronha, levando ao embar-
         so e, naturalmente, salientando que o tinha  uma escaramuça desordenada, onde viriam  que das tropas de Suleimão. Quando isso
         conseguido por sua arte e obra. Eram os con-  a perder a vida vários portugueses e mouros,  aconteceu, Diu estava em ruínas, com pouco
         flitos do costume, na Índia. Não fora Mar-  incluindo o próprio rei. Algumas das cróni-  mais de quarenta homens capazes de com-
         tim Afonso de Sousa quem era, e Nuno da  cas portuguesas dizem-nos que, nesta altura,  bater, sem pólvora, sem espingardas e sem
         Cunha nunca lhe teria perdoado a ousadia,  Bahadur há muito que conspirava e prepara-  lanças, mas permanecia vitoriosa.
         contudo, a proximidade das relações que sa-  va um ataque à recém-construída fortaleza                Z
         bia ter com o rei de Portugal certamente que  portuguesa, armazenando armas e abasteci-   J. Semedo de Matos
         lhe recomendaram prudência.        mentos para o fazer, e tendo enviado um pe-                    CFR FZ
                                                                                    REVISTA DA ARMADA U DEZEMBRO 2006  21
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