Page 388 - Revista da Armada
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Personalidade culta e erudita, praticava Por motivos vários, decorreu quase um sé- habitat natural, algumas espécies têm sofrido
desportos de ar livre, gostava do contacto culo antes que fosse possível concretizar o voto importante regressão geográfica no decurso
com a natureza, tinha pela caça uma verda- expresso de forma tão eloquente por Alberto dos últimos séculos, comprovada pelo registo
deira paixão. Encorajado pelo espírito natu- Girard. Desejo que hoje vemos finalmente histórico das observações antigas.
ralista da época, depressa juntou ao seu gos- cumprido, com a participação notável da Ma- O Grou-comum, espécie incluída neste vo-
to pela pintura e pelo desenho, o desejo de rinha Portuguesa. lume, com o número 233, constitui um bom
estudar e divulgar os exemplares que, com Desde logo, cumpre destacar a participação exemplo da referida situação. Aves esguias,
grande facilidade, caçava. fundamental do Aquário Vasco da Gama, que semelhantes a cegonhas, os grous distinguem-
Recordamos a propósito o testemunho ri- se tem distinguido pelo trabalho de conserva- -se facilmente pela cor cinzenta da pluma-
goroso do engenheiro Alberto Gi- gem. Conhecemo-los bem, através
rard, que durante quinze anos foi da sua representação estilizada no
companheiro de trabalho de D. Carlos logotipo da companhia aérea ale-
de Bragança (numa frase do próprio mã - Lufthansa. Nidificam em ra-
Rei) e que nestes termos se lhe refe- ros locais situados nas margens do
re, por altura do Elogio Academico de Báltico e daí para leste, em habitat
Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Car- adequado. São aves migradoras,
los I, proferido em sessão pública que surgem na Península Ibérica
na Academia Real das Sciencias de na estação fria, frequentando ex-
Lisboa, em 20 de Junho de 1909: tensas planícies e azinhais. Porém,
“É porque D. Carlos tinha a me- nos finais do século XIX a situação
mória da vista: fórma, cor, tom, era muito diferente. Esta espécie
tudo apprehendia rapidamente e nidificava em Portugal, próximo
para sempre fixava com a Sua inex- de Alcochete e também no Baixo
cedível memória, continuando Guadiana, como refere D. Carlos
como que uma tradição de famí- de Bragança nas suas notas orni-
lia, e a memória, se não é a base da tológicas até agora inéditas. Estas
intelligencia, é, incontestavelmen- observações convergem com ou-
te, a base do saber na sciencia e na tras, da mesma época, realizadas
arte a da feição do artista. por ornitólogos ingleses no sul de
Essa intuição do colorido era na- Espanha.
tural que muito cedo o fizesse tam- Este volume também inclui di-
bem amante da ornithologia. versas espécies de aves marinhas.
Esta sciencia é incontestavel- Umas são características do litoral
mente entre as do estudo da na- enquanto outras vivem no mar
tureza uma das que mais attrae, aberto, pertencem ao domínio pe-
pela belleza da fórma viva, pela lágico. Habitam os oceanos e pos-
variedade do seu colorido e pela suem adaptações extraordinárias.
feição sympathica dos costumes; e, Consomem organismos marinhos,
se a isso juntarmos que D. Carlos bebem água salgada e podem pas-
era um eximio atirador, não é para sar vários anos sem pisar terra fir-
extranhar que, já aos treze annos, me. Geralmente fazem-no apenas
remettesse as Suas colheitas ao na época da postura, quando vêm
Museu de Lisboa e que pouco depois fosse ção e divulgação das colecções resultantes do incubar o ovo (em geral único) e criar o juve-
organisando um Museu ornithologico. trabalho oceanográfico pioneiro de D. Carlos nil nas primeiras semanas de vida. De segui-
Aos vinte e quatro annos escrevia uma de Bragança. Foi também aquela instituição da, voltam para o mar. Muito vulneráveis em
ornithologia de Portugal; mas com aquella que desenvolveu, com perseverança, os es- terra, escolhem locais que as protegem dos
probidade scientifica, que sempre Lhe co- forços necessários para que fosse publicada predadores, as ilhas oceânicas e falésias do
nheci, ia continuamente refundindo a obra, a parte inédita do “Catalogo illustrado das aves litoral. Estes refúgios são vitais para a sua so-
e só muito mais tarde, em 1893, é que se re- de Portugal” divulgando desta forma valioso brevivência.
solveu a publica-la, com o simples titulo de património cultural da nação, que recebera Arquipélagos oceânicos portugueses, os
Catalogo illustrado das aves de Portugal. em 1985. Açores e a Madeira, com as Desertas e as Sel-
N’esta obra bem se affirma a Sua modés- Ao Volume II, editado em 2002, vem jun- vagens, e outrora também Cabo Verde, são lo-
tia! Bem sabia, é verdade, que Bocage, Albi- tar-se agora o Volume III da notável obra or- cais de nidificação muito utilizados por algu-
no Giraldes, Tait e Paulino de Oliveira, sem nitológica de D. Carlos de Bragança, editado mas espécies de aves pelágicas que percorrem
falar de outros, tinham desbravado o terreno pela Tribuna da História, com o patrocínio do vastas regiões do Atlântico. Mais próximo da
ornithologico, mas é bello ver-se como, fran- Banco Espírito Santo. nossa costa continental, o arquipélago das Ber-
queando o Seu museu, tinha deixado Pau- Este livro inclui principalmente aves aquá- lengas é um importante local de nidificação de
lino de Oliveira citar espécies novas para a ticas. Algumas espécies vivem nos terrenos aves marinhas e começou a ser estudado nos
fauna portugueza, só existentes no Museu alagadiços do interior, outras preferem os es- finais do século XIX.
das Necessidades, sem as ter conservado tuários e lagunas do litoral. Muitas formam Situado no extremo ocidental da Europa, o
como novidades para o seu trabalho mono- grandes bandos e todos os anos realizam lon- território Português constitui um eixo estraté-
graphico, que havia tanto tempo projectara, gas migrações, que constituem um dos gran- gico para estudar as migrações das aves que
e limitar-se por fim a uma obra simples, sem des espectáculos da Natureza. se deslocam anualmente entre os continentes
desenvolvimentos inúteis, mas obra de va- As zonas húmidas distinguem-se pela rique- Europeu e Africano. Assim o compreendeu
lor incontestavel, verdadeiro monumento da za das comunidades biológicas que suportam. William C. Tait, ornitólogo britânico residente
ornithologia portugueza, que mereceria ser Infelizmente, isso não tem bastado para suster na cidade do Porto, que sobre este tema publi-
concluído, tanto mais que abundantes ele- a sua destruição, que remonta a tempos anti- cou interessantes notas técnicas, quase todas
mentos deixou do Seu proprio punho para gos, em grande parte causada pelo Homem. escritas em Inglês.
a sua completa redacção.” Acossadas pela degradação progressiva do seu Nessa época o estudo científico das migra-
26 DEZEMBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA