Page 378 - Revista da Armada
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com o texto, se juntava cópia da
que fora escrita para Portugal com
um mapa explicativo da teoria em
causa. Ora, nós sabemos que a bi-
blioteca de Colombo começou a
ser formada apenas depois da sua
saída de Portugal, e que muitos
dos escritos autógrafos foram redi-
gidos para fundamentar a insistên-
cia de que as terras encontradas a
ocidente eram as ilhas de Cipango
(Japão) e a terra de Cataio (China),
por isso se duvida que alguma vez
tenha havido uma real correspon-
dência entre os dois. Aliás, não se
encontrou mais nenhum dos do-
cumentos referidos e do eventual
mapa apenas existe uma recons-
trução posterior com base nos da-
dos ali escritos. Mas poderemos
estar em face de um documento
verdadeiro, pequena peça de um
puzzle, que pressupõe uma troca Atlântico Norte (Outubro). Cristovão Colombo aproveita os mesmos ventos da “Volta da Mina”.
de correspondência e um conjunto de noções que permitiam navegar para ocidente com S. Salvador escreve que está “leste para oeste
que teriam a autoridade científica de Tosca- os ventos alísios e regressar pela latitude dos na mesma linha da ilha de Hierro”, o que não
nelli. Importa, no entanto saber se isso acon- Açores, aproveitando os gerais do oeste; e uma está muito longe da verdade. Da mesma for-
teceu antes ou depois da saída de Portugal. O vaga noção cosmográfica – pouco consisten- ma, quando decide regressar, toma claramente
documento que chegou até nós é posterior à te em termos concretos, mas muito intensa o rumo de nordeste até alcançar a latitude dos
sua migração para Castela, mas isso não quer na sua mente – de que o Oriente das riquezas Açores, onde aportou em Fevereiro de 1493.
dizer que Colombo não tivesse contactado com que vinham pelo Mediterrâneo e que faziam Passou cinco meses no mar, alguns dos quais
a ideia do cosmógrafo florentino antes disso. a fortuna dos grandes da sua terra natal, podia navegando pelo meio de ilhas desconhecidas,
Quando apresentou a sua ideia a D. João II, estar a umas semanas de viagem, navegando com todos os perigos que isso significava. É
deve tê-la fundamentado de alguma maneira, em linha recta na direcção do ocidente. verdade que perdeu a “Santa Maria”, por um
e não iria dizer que o caminho era mais curto Partiu de Palos de la Frontera a 3 de Agosto descuido de vigia que a deixou cair em cima
navegando para ocidente, sem que lhe juntasse de 1492, ao comando de três navios (“Niña”, de uns baixos, mas todos sabemos quanto
a autoridade de qualquer parecer credível. “Pinta” e “Santa Maria”), e tomando o rumo uma viagem deste tipo exige, todos os dias,
Mais uma vez não será fácil encontrar uma das ilhas Canárias, onde ficaria retido por cerca decisões rápidas que, se forem erradas, po-
solução para este problema, mas a lógica de um mês, por causa de uma avaria no leme dem conduzir à perda das gentes e dos na-
aponta-nos uma via possível: Colombo ouviu da “Pinta”. A 6 de Setembro tomava o cami- vios. O simples acaso da fortuna não explica
ou leu em qualquer lado que essa solução se- nho de oeste até alcançar a ilha de S. Salvador tanto tempo no mar, escolhendo caminhos tão
ria possível e tal ideia era corrente em Lisboa, a 12 de Outubro desse mesmo ano. No diário apropriados em circunstâncias tão difíceis de
embora já não fosse aceite pelo saber oficial que já referimos podem encontrar -se notas avaliar por um leigo.
ligado à coroa, consubstanciado nos matemá- acerca da variação da declinação magnética Apesar de não ter alcançado os objectivos
ticos, físicos, astrónomos que circundavam o (13 e 17SET); considerações sobre as guardas que se propunha, as suas viagens são o espe-
rei. Este conceito está presente na proposta da Ursa menor e a contagem das horas noc- lho de um conhecimento náutico inegável. É
que apresentou em Portugal, e a ela juntou, turnas; recomendações de segurança para os possível que venha de uma experiência me-
certamente, a convicção de que conseguiria navios; valores estimados do caminho percor- diterrânica anterior a 1476, mas o essencial do
fazer a viagem de ida e volta. O problema rido; e ordens diversas, que revelam sentido saber que lhe permitiu atravessar o Atlântico
é que as explorações portuguesas estavam marinheiro, conhecimento dos perigos, conhe- colheu-o em Portugal, provavelmente, nas
numa fase demasiado avançada para os seus cimento sobre como lidar com os ventos e cor- viagens à Guiné ou à Mina. É incontestável,
projectos, e já se tinham vivido as experiên- rentes, extremo cuidado com baixos e escru- também, que tentou acumular um conheci-
cias suficientes para não embarcar naquele pulosos procedimentos para se aproximar de mento clássico patente na magnífica bibliote-
projecto. O rei podia ter-lhe dito que fosse e terra. É interessante verificar que existe uma ca que começou a reunir por alturas de 1495,
que, quando viesse lhe daria os benefícios que ânsia permanente de encontrar terra (compre- mas não creio que tenha absorvido tudo o que
já prometera a muitos outros, em circunstân- ensível) manifesta na forma como se repetem leu, nem que alguma tenha sido um erudito
cias semelhantes, mas não era nada disso que registos do que tomam por sinais dela. São humanista do Renascimento. Faltou-lhe ain-
queria Colombo. Colombo queria honrarias quase quotidianos. Há também um conjun- da a sensibilidade necessária para governar
e benesses que obteve com a assinatura das to de informações de latitudes, cujos valores gentes e terras tão distantes do reino, mas foi,
Capitulações de Santa Fé , mas que D. João II são tão disparatados que só podem resultar sem sombra de dúvida, um marinheiro notá-
nunca poderia aceitar. de erros de copista ou do próprio padre Las vel, com uma intuição extraordinária. Na hora
Importa, no entanto, compreender que no Casas, que refere explicitamente, no que diz da morte caía-lhe em cima o opróbrio de um
momento em que parte para Castela e vai respeito ao dia 30 de Outubro, “Na opinião do erro monumental sustentado até ao absurdo,
apresentar o seu projecto aos Reis Católicos, Almirante, estavam a quarenta e dois graus e agravado por acusações de mau e despótico
leva consigo um conjunto de conhecimentos da linha equinoxial [absurdo] se o manuscri- governo das Índias. Mas o andar dos séculos
que foi acumulando ao longo da vida: uma to de onde copiei isto não estiver alterado”., acabaria por devolver-lhe a dignidade de gran-
experiência que trazia do Mediterrâneo, de à chegada a S. Salvador, que estava. Se anali- de descobridor do Novo Mundo.
muitos anos de comércio marítimo e, prova- sarmos com atenção todo o diário, seguindo Z
velmente, corso; um saber sobre a navegação o caminho percorrido, verificamos que nun- J. Semedo de Matos
atlântica e, sobretudo, do sistema de ventos ca perdeu a noção da latitude, e à chegada a CFR FZ
16 DEZEMBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA