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A MARINHA DE D. JOÃO III (23)
A ameaça francesa em Guanabara
A ameaça francesa em Guanabara
chegada de Tomé de Sousa ao Bra- Deve dizer-se, no entanto que a primeira to de reconhecimento para a instalação de
sil, e as medidas que tomou como fase do seu mandato correspondeu a um mo- uma colónia permanente em Guanabara.
A primeiro governador da Província mento de maior fraqueza dos franceses que Construir o que viriam a chamar a «França
de Santa Cruz, deram um novo alento ao não tinham, propriamente, uma vocação ma- Antártica», projecto que tem o Almirante
domínio português na América do Sul. É rítima, nem ambições ultramarinas coerentes de França, Gaspar de Coligny, como prin-
bem verdade que uma parte dessas medi- (sobretudo no Atlântico). Só podia ir para o cipal mentor, mas que não passou ao lado
das teve a ver com a penetração controla- mar numa conjuntura de forças favorável, da própria política do rei Henrique II. Para
da no sertão, com o fito óbvio de encontrar nomeadamente no que dizia respeito à riva- além dos proveitos económicos que o es-
as fontes de metais preciosos, que tabelecimento poderia ter, a ideia
os espanhóis já tinham descober- base correspondia ao estabeleci-
to nos seus sectores de coloniza- mento de uma colónia protestante
ção. Contudo, deve salientar-se calvinista, com o sentido utópico
o esforço lúcido e persistente de de um «novo mundo» construído
domínio sobre a costa atlântica, de raiz, com os valores pregados
procurando evitar as constantes por Calvino, aproveitando a «pu-
incursões francesas, na demanda reza selvagem» dos nativos e sem
do pau brasil. Nota-se, aliás, que a os defeitos da vida europeia.
vontade de explorar o interior foi Partiu em Julho de 1555, alcan-
sempre limitada e restringida pela çando Búzios a 31 de Outubro e
importância de não desguarnecer Guanabara a 10 de Novembro,
o litoral, obrigando a que a própria montando, de imediato um siste-
acção missionária dos recém-che- ma defensivo que pretendia im-
gados jesuítas, dirigidos pelo Pa- pedir a entrada dos portugueses
dre Manuel da Nóbrega, não pu- num reduto, por si só, difícil, da-
desse ser feita com o entusiasmo das as condições da barra do Rio
que a companhia pretendia. de Janeiro. Villegagnon construiu
Não é comparável o empenha- o seu quartel general fortificado
mento português nesta região, na ilha que hoje tem o seu nome
com aquele que se fazia nos ma- e onde, desde 1938, está alojada
res da Índia, onde sempre exis- a Escola Naval Brasileira. O seu
tiram numerosas esquadras de projecto teve, desde início uma di-
guerra capazes de afrontar forças ficuldade insuperável: a comunida-
poderosas, no entanto, as amea- de francesa de cerca de seiscentos
ças também nunca atingiram as homens não era constituída por
dimensões do Índico e, talvez, convictos protestantes, nem por
que os interesses económicos no gente de bem, ansiosa de construir
Brasil nunca tivessem sido enca- uma nova vida no ultramar. De um
rados com a importância dos do modo geral tinham sido recruta-
mundo das especiarias orientais. dos entre condenados arrancados
A presença francesa – apesar de Plano da Baía do Rio de Janeiro onde está representada a ilha de Villegagnon e a das prisões, pouco escrupulosos e
se tornar endémica, desde os anos Lagea, onde o almirante francês montou as defesas da “França Antártica”. nada dispostos a aceitar o purita-
vinte – concretizava-se no apareci- Manuscrito da Biblioteca da Ajuda nismo calvinista imposto pelo seu
mento de navios isolados que jogavam na lidade mantida com Carlos V. Nesse aspecto, chefe. O mau estar era muito grande e foi
possibilidade de iludir a vigilância nacio- a assinatura, em 1552, do tratado de Cham- até à tentativa de assassínio do almirante,
nal, muito mais do que em desafiar o seu bord, que os uniu aos turcos e aos príncipes que escapou por um triz.
poder militar. protestantes alemães, contra o imperador e Entretanto, a administração portuguesa
Pode dizer-se que, até ao governo de Tomé os aliados portugueses, deu-lhes um alen- foi tomando consciência da gravidade da
de Sousa, não houve ninguém que tivesse to e uma audácia para acções marítimas no situação, apesar da displicência de Duarte
entendido o espaço brasileiro, encarado sob Atlântico, que se sentiu na rota da Flandres Costa, governador que sucedeu a Tomé de
a perspectiva territorial de provável fonte de e, progressivamente, no Brasil. Sousa. É o próprio embaixador de Carlos
riquezas, sempre agregado à vertente atlân- É neste contexto que emerge a figura do V, em Paris, que informa D. João III da for-
tica, com condições de navegabilidade muito Vice-Almirante francês Nicolas de Ville- tificação francesa “na rota das Índias”, que
peculiares, cujo policiamento não era fácil se gagnon, sobre quem nos vamos debruçar em breve será reforçada, com novos efecti-
não fossem empenhados meios de monta. A com um pouco mais atenção, na medida vos e meios. O soberano português faleceu
sua visão do governo do Brasil, patente nas em que levou a cabo um projecto que po- em Junho de 1557 mas, antes disso, nomeou
medidas que tomou e nos conselhos que re- dia ter comprometido, de forma definitiva, Mem de Sá para o cargo de governador do
digiu para D. João III, no momento em que a presença portuguesa no Atlântico sul. A Brasil e deu instruções para que a colónia
abandonou o cargo, mostram uma lucidez primeira vez que surge na costa brasileira francesa fosse expulsa. Será assunto para a
estratégica que não viria a ser compreendi- é em 1554, numa viagem ao Cabo Frio que nova revista.
da de imediato pela Coroa e, sobretudo, que aparenta ser semelhante a todas as outras Z
não teriam correspondência na acção gover- – resgate do pau brasil e outros produtos J. Semedo de Matos
nativa que se lhe sucedeu. locais – mas que teve o objectivo concre- CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U MAIO 2007 23