Page 356 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (24)
Senhores Professores
Senhores Professores
e há coisa de meio século uma pessoa verdade é que estes logo perdiam a vontade de “pescasse” mesmo nada do assunto e tivesse o
com a Quarta Classe completa impunha rir quando pensavam que um dia lhes poderia azar de o apanhar em “dia-não”.
Srespeito pela sua “bagagem” educacional, suceder o mesmo. E acabavam, naturalmente, Outros Mestres havia, porém, que nos conta-
nos dias de hoje um licenciado, não sendo con- por se lembrar dos tratos de polé que no dia-a- giavam com o seu próprio entusiasmo e prazer
siderado propriamente um analfabeto, tende, -dia sofriam às mãos daquele homenzinho de em abordar determinadas matérias. Quantos
cada vez mais, a ser encarado como pertencen- baixa estatura, cabelo pastoso e fato surrado. dos meus velhos condiscípulos poderão, al-
do à classe média da população escolarizada. Que prazer parecia ele ter em exibir publica- guma vez, esquecer a imagem do Professor de
Nessa conformidade, e aspirando a um rótulo mente a ignorância dos seus alunos! Entrava Meteorologia literalmente apalpando a carta de
literário de mais alto nível, decidi aproveitar na aula, afundava-se na cadeira, pés sobre a tempo estendida sobre a parede e exclamando,
uma oportunidade que a Marinha me ofereceu secretária e vá de perscrutar a plateia à cata de extasiado, com os olhos completamente es-
para prosseguir os estudos. E eis que descubro, algum infeliz para chamar ao quadro. Claro que bugalhados: “Metam as mãos!... Sintam a alta
não sem alguma surpresa, que o atrevimento a malta, nessas ocasiões, mantinha a “mona” pressão a encher… A baixa a rodar… E a força
me obrigará a regressar aos bancos da Escola baixa para passar despercebida ao sádico tira- de Coriollis a mandar nisto tudo!.. Sintam! Sin-
Naval durante pelo menos um ano. Como, en- nete, mas este acabava sempre por conseguir tam!... Isto é vida!”.
tretanto, já decorreu uma boa década e meia e fazer com que algum incauto levantasse os Ah, mas também tinha os seus dias! Em cer-
tas ocasiões a sua espirituosidade convertia-se
em declarado mau-humor e era vê-lo, então,
a zurzir, com cruel refinamento, na nossa falta
de conhecimentos. Uma “saída” extremamen-
te simples mas que arrasava o ego de qualquer
um era quando um aluno, frente ao quadro,
completava um dos passos de resolução de
um problema complicado e se voltava para ele,
buscando um simples aceno de aprovação, re-
cebendo, porém, em troca, a seca exclamação
“Porque paraste? Estás à espera de palmas?”. E o
pior é que, quase quinze anos volvidos, dei por
mim a utilizar a mesmíssima expressão com o
meu filho mais velho, durante uma impaciente
e interminável sessão de acompanhamento de
trabalhos de casa.
Agora artista, artista, era mesmo o distinto
Oficial encarregue de ministrar duas “cadei-
ras” da área de Operações respectivamente ao
Terceiro e Quarto Anos. Uma figura simpática,
sem dúvida, e uma excelente pessoa – como, de
resto, tive oportunidade de verificar quando nos
acompanhou na nossa última viagem de instru-
ção -, mas planeamento de aulas é que não era
com ele! Pois se um dia iniciava a abordagem
de um determinado assunto, pegava noutro a
esse regresso se fará em períodos situados fora olhos e, inevitavelmente, o encarasse. Bastava meio na aula seguinte, acabando por retomar
das chamadas horas normais de serviço, é muito lançar para o ar algo como “Tu aí, rapazinho, o primeiro tema dali a alguns dias. E posso ga-
pouco provável que venha a reencontrar algu- que estás a olhar para o chão, vem cá!” e logo rantir que não era raro vê-lo ministrar ao Tercei-
mas das famosas personagens que assombraram alguém, por reflexo nervoso ou na vã esperan- ro Ano matérias do Quarto e vice-versa. Ainda
– no bom sentido, claro! – a minha vida de ca- ça de que outro tivesse mordido o isco, sucum- hoje, quando vejo aqueles filmes modernos
dete, algumas já tão antigas na instituição que bia à tentação de espreitar pelo canto do olho. cheios de flashbacks e com o fio da narração
até deviam estar inventariadas. Uma vez escolhida a vítima tinha esta garan- cortado e baralhado, deixando à vítima, digo,
Num ou noutro caso será, até, um alívio. Es- tidos, pelo menos, vinte minutos de uma boa ao espectador a árdua tarefa de recolher as ce-
tou a lembrar-me, por exemplo daqueles Senho- “esfrega”, não sendo raras as ocasiões em que nas dispersas e montá-las como um puzzle cujo
res Comandantes que, de visita à Escola, eram, estas sessões de tortura se prolongavam até ao sentido só descortina ao cair do pano, lembro-
sem a mínima cerimónia, abordados no meio fim da aula. Os “sobreviventes”, naturalmente, -me, inevitavelmente, daquelas famosas aulas.
da parada pelo nosso Professor de Física e de respiravam de alívio, pois enquanto o pau vai e O “cadetame” acabava, inevitavelmente, por
Electromagnetismo, figura antiquíssima já na- vem folgam as costas. se habituar ao fim de duas ou três semanas. O
quela altura, e, ali em público, estivesse quem Claro que, no fundo, no fundo – bem no fun- pior era quando vinham os testes, vulgo “repe-
estivesse, eram completamente enxovalhados do! -, o senhor até nem era má pessoa e acabava tições”, pois era frequente surgirem perguntas
com mimos do género “Olha-me este figurão, por dar, quase sempre, um “jeitinho” nos exa- sobre assuntos nunca antes abordados. O re-
que já é Capitão-de-Fragata! Como é que um mes e nas provas orais (isto sem nunca abdicar cíproco também era verdadeiro, com a nossa
indivíduo de compreensão tão lenta, chega lá? do seu sadismo, que levava os exasperados exa- inteligência a ser ofendida (embora até nem le-
Enganaste-os bem, hã?”. Embora tais comentá- minandos a perder por transpiração um décimo vássemos a mal!) pela abordagem de conteúdos
rios fossem motivo de risota entre os cadetes, a do seu peso bruto), a menos que o aluno não já repisados em testes anteriores.
30 NOVEMBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA