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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (24)



                          Senhores Professores
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             e há coisa de meio século uma pessoa  verdade é que estes logo perdiam a vontade de  “pescasse” mesmo nada do assunto e tivesse o
             com a Quarta Classe completa impunha  rir quando pensavam que um dia lhes poderia  azar de o apanhar em “dia-não”.
         Srespeito pela sua “bagagem” educacional,  suceder o mesmo. E acabavam, naturalmente,   Outros Mestres havia, porém, que nos conta-
         nos dias de hoje um licenciado, não sendo con-  por se lembrar dos tratos de polé que no dia-a-  giavam com o seu próprio entusiasmo e prazer
         siderado propriamente um analfabeto, tende,  -dia sofriam às mãos daquele homenzinho de  em abordar determinadas matérias. Quantos
         cada vez mais, a ser encarado como pertencen-  baixa estatura, cabelo pastoso e fato surrado.  dos meus velhos condiscípulos poderão, al-
         do à classe média da população escolarizada.  Que prazer parecia ele ter em exibir publica-  guma vez, esquecer a imagem do Professor de
         Nessa conformidade, e aspirando a um rótulo  mente a ignorância dos seus alunos! Entrava  Meteorologia literalmente apalpando a carta de
         literário de mais alto nível, decidi aproveitar  na aula, afundava-se na cadeira, pés sobre a  tempo estendida sobre a parede e exclamando,
         uma oportunidade que a Marinha me ofereceu  secretária e vá de perscrutar a plateia à cata de  extasiado, com os olhos completamente es-
         para prosseguir os estudos. E eis que descubro,  algum infeliz para chamar ao quadro. Claro que  bugalhados: “Metam as mãos!... Sintam a alta
         não sem alguma surpresa, que o atrevimento  a malta, nessas ocasiões, mantinha a “mona”  pressão a encher… A baixa a rodar… E a força
         me obrigará a regressar aos bancos da Escola  baixa para passar despercebida ao sádico tira-  de Coriollis a mandar nisto tudo!.. Sintam! Sin-
         Naval durante pelo menos um ano. Como, en-  nete, mas este acabava sempre por conseguir  tam!... Isto é vida!”.
         tretanto, já decorreu uma boa década e meia e  fazer com que algum incauto levantasse os   Ah, mas também tinha os seus dias! Em cer-
                                                                               tas ocasiões a sua espirituosidade convertia-se
                                                                               em declarado mau-humor e era vê-lo, então,
                                                                               a zurzir, com cruel refinamento, na nossa falta
                                                                               de conhecimentos. Uma “saída” extremamen-
                                                                               te simples mas que arrasava o ego de qualquer
                                                                               um era quando um aluno, frente ao quadro,
                                                                               completava um dos passos de resolução de
                                                                               um problema complicado e se voltava para ele,
                                                                               buscando um simples aceno de aprovação, re-
                                                                               cebendo, porém, em troca, a seca exclamação
                                                                               “Porque paraste? Estás à espera de palmas?”. E o
                                                                               pior é que, quase quinze anos volvidos, dei por
                                                                               mim a utilizar a mesmíssima expressão com o
                                                                               meu filho mais velho, durante uma impaciente
                                                                               e interminável sessão de acompanhamento de
                                                                               trabalhos de casa.
                                                                                 Agora artista, artista, era mesmo o distinto
                                                                               Oficial encarregue de ministrar duas “cadei-
                                                                               ras” da área de Operações respectivamente ao
                                                                               Terceiro e Quarto Anos. Uma figura simpática,
                                                                               sem dúvida, e uma excelente pessoa – como, de
                                                                               resto, tive oportunidade de verificar quando nos
                                                                               acompanhou na nossa última viagem de instru-
                                                                               ção -, mas planeamento de aulas é que não era
                                                                               com ele! Pois se um dia iniciava a abordagem
                                                                               de um determinado assunto, pegava noutro a
         esse regresso se fará em períodos situados fora  olhos e, inevitavelmente, o encarasse. Bastava  meio na aula seguinte, acabando por retomar
         das chamadas horas normais de serviço, é muito  lançar para o ar algo como “Tu aí, rapazinho,  o primeiro tema dali a alguns dias. E posso ga-
         pouco provável que venha a reencontrar algu-  que estás a olhar para o chão, vem cá!” e logo  rantir que não era raro vê-lo ministrar ao Tercei-
         mas das famosas personagens que assombraram  alguém, por reflexo nervoso ou na vã esperan-  ro Ano matérias do Quarto e vice-versa. Ainda
         – no bom sentido, claro! – a minha vida de ca-  ça de que outro tivesse mordido o isco, sucum-  hoje, quando vejo aqueles filmes modernos
         dete, algumas já tão antigas na instituição que  bia à tentação de espreitar pelo canto do olho.  cheios de flashbacks e com o fio da narração
         até deviam estar inventariadas.    Uma vez escolhida a vítima tinha esta garan-  cortado e baralhado, deixando à vítima, digo,
           Num ou noutro caso será, até, um alívio. Es-  tidos, pelo menos, vinte minutos de uma boa  ao espectador a árdua tarefa de recolher as ce-
         tou a lembrar-me, por exemplo daqueles Senho-  “esfrega”, não sendo raras as ocasiões em que  nas dispersas e montá-las como um puzzle cujo
         res Comandantes que, de visita à Escola, eram,  estas sessões de tortura se prolongavam até ao  sentido só descortina ao cair do pano, lembro-
         sem a mínima cerimónia, abordados no meio  fim da aula. Os “sobreviventes”, naturalmente,  -me, inevitavelmente, daquelas famosas aulas.
         da parada pelo nosso Professor de Física e de  respiravam de alívio, pois enquanto o pau vai e  O “cadetame” acabava, inevitavelmente, por
         Electromagnetismo, figura antiquíssima já na-  vem folgam as costas.   se habituar ao fim de duas ou três semanas. O
         quela altura, e, ali em público, estivesse quem   Claro que, no fundo, no fundo – bem no fun-  pior era quando vinham os testes, vulgo “repe-
         estivesse, eram completamente enxovalhados  do! -, o senhor até nem era má pessoa e acabava  tições”, pois era frequente surgirem perguntas
         com mimos do género “Olha-me este figurão,  por dar, quase sempre, um “jeitinho” nos exa-  sobre assuntos nunca antes abordados. O re-
         que já é Capitão-de-Fragata! Como é que um  mes e nas provas orais (isto sem nunca abdicar  cíproco também era verdadeiro, com a nossa
         indivíduo de compreensão tão lenta, chega lá?  do seu sadismo, que levava os exasperados exa-  inteligência a ser ofendida (embora até nem le-
         Enganaste-os bem, hã?”. Embora tais comentá-  minandos a perder por transpiração um décimo  vássemos a mal!) pela abordagem de conteúdos
         rios fossem motivo de risota entre os cadetes, a  do seu peso bruto), a menos que o aluno não  já repisados em testes anteriores.

         30  NOVEMBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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